segunda-feira, 31 de julho de 2023

Conto "Sementes"



Dedicado à memória de senhor Nenê Lourenço e a todos (as) quilombolas das Queimadas, Crateús, Ceará, e do Brasil.

Cada vez que Zaila gritava, parecia que a criança se assustava e retornava para o universo que era a barriga da mãe. Dona Inaê, a doutora da comunidade, veio fazer o parto e dar o conforto para a família que estava tão aflita naquele momento. Além de curar cabeças desajustadas, remendar corações partidos e encontrar destinos perdidos, sempre era aquela preta velha quem amparava as crianças que fariam “a travessia”, como ela fazia questão de dizer. Antes que cada ser humano abrisse os olhos pela primeira vez, acordasse o mundo com seu grito e sentisse o calor do colo da mulher que o havia parido, precisava passar pelas mãos de Mãe Inaê. 

Depois que alguma alma fizera o esforço de caminhar do centro da comunidade até sua casa, um lugar isolado, bem mais perto da mata fechada e do riacho, a fonte da água da vida daquele lugar, Mãe Inaê sempre podia adivinhar que se tratava de caso de vida-morte. Em geral, eram mais vidas, mesmo quando morte era. Os nascimentos na comunidade se davam aos montes, enquanto os velhos, agarrados àquele chão, teimavam em viver. Todos os anos, eram cerca de dez a vinte crianças que ela segurava e, por isso, era considerada a mãe de quase todas as pessoas que ali viviam.

Dizia que o ofício tinha sido aprendido observando a mãe partejar. Nunca havia frequentado a escola, não sabia ler, e não sabia para quê aquilo era preciso. Todos os dias lia as histórias  espalhadas pelos rostos das gentes. Às vezes, queria que a neta escrevesse as rezas que ela trazia decoradas no coração, mas logo o pensamento se debandava para outro lugar e ela achava que aquilo era uma bobagem. Para quê anotar em um caderninho a maior herança de sua vida? A memória ainda podia conectar passados e montar fragmentos aparentemente sem sentido. O seu patrimônio não estava escrito em nenhum diploma pendurado na parede de barro de sua sala, nem em bens materiais acumulados. Era o matrimônio cotidiano com as vidas que a rodeavam, a voz de cada uma daquelas pessoas que a conheciam e por ela mantinham respeito e admiração, que a tornavam forte. 

Zaila continuava a gritar. Era magrinha, pequenina, pretinha como uma jabuticaba, não aparentava ter mais de 15 anos, mas estava perto de três décadas de resistência. O corpo tão frágil era capaz de contar histórias de enfrentamento cotidianos para que aquela mulher estivesse ali, a ponto de plantar mais uma muda de esperança nesse mundo de tanta dor. Após desistir de estudar para se dedicar ao trabalho na roça, a nova professora na escola da comunidade, a única funcionária que a prefeitura havia mandado naquele ano, a incentivou a terminar seus estudos na capital. Zaila, mesmo com muito medo, seguiu aquela voz interior que, às vezes, chamamos de destino e colamos à pele como uma marca que nos persegue pra nos lembrar todos os dias dos sonhos que queremos realizar. Seguiu. Sobre-viveu trabalhando em “casas de família”, com patroas que a deixavam estudar, mas que, em troca, exigiam que ela realizasse todas as tarefas domésticas. Zaila terminou o ensino médio e descobriu que tinha algo além, a universidade. As longas noites acordada após o cansaço do dia não a fizeram desistir e ela ganhou uma vaga na maior universidade pública da região para estudar História.

Agora, sempre na cidade, nunca mais havia tido tempo de passar longos dias na comunidade. Mas vinha chegando uma data especial no calendário da sua gente, a festa no terreiro de Mãe Maria. Foi lá que Zaila percebeu um sentimento diferente modificando a amizade entre ela e Nando, seu primo. As mães de Zaila e de Nando, irmãs, quando descobriram o que estava acontecendo, decidiram não interferir, afinal, dentre todas as famílias que ali viviam, a maioria havia se formado pelo amor de primos com primas, naquela fase da vida em que um simples olhar é capaz de fazer o coração acelerar, as pernas tremerem e crença de que tudo é eterno se torna maior. 

Zaila e Nando sempre foram muito próximos, mas aquele sentimento aumentou quando ela começou a ir para casa aos finais de semana e os dois gastavam horas juntos cuidando do terreiro de Mãe Maria, varrendo o quintal, regando as plantas, lavando o alguidar. Era nesse mesmo espaço que a Associação de Moradores da Comunidade se reunia para discutir estratégias de enfrentamento aos desmandos do fazendeiro da região que alegava ser dono das terras em que a comunidade vivia desde sempre. A maioria dos moradores nunca tinha conhecido outras paisagens e até repetiam a mesma história: haviam trabalhado naquelas terras, plantando, colhendo, criando pequenos animais e cultivando suas ervas e, com o passar dos anos, construíram “com as próprias mãos”, como diziam, a única escola da comunidade.

Mas nem tudo estava em seu lugar. O velho Raimundo, capataz da fazenda desde a juventude, vivia fazendo ameaças àquelas vidas quando rodeava o vilarejo a cavalo e fazia questão de mostrar a espingarda que trazia pendurada rente ao corpo. Nunca fazia o trajeto só, estava sempre acompanhado de algum outro homem. Quando aquele grupo de pretos mais jovens começou a sair da comunidade, Raimundo, assim como seu patrão, achou que os problemas começaram. 

- Depois que aquele negrinho andou inventando essa moda de participar daquelas reuniões na capital, tá se achando muito sabido e veio com uma uma história de que esses preto são dono dessas terra tudinho. 

Ele falava com a voz grossa, mascando um pouco de fumo no canto da boca, o que lhe dava um ar ainda mais sisudo, além do chapéu que usava cobrindo parte dos olhos. Os mais antigos diziam que sua avó, Dona Elisa, antiga moradora da comunidade foi quem o criou até os cinco anos de idade e havia ficado depressiva após a fuga da filha única. Segundo a história oral, antes de morrer, a anciã foi até a

casa dos Medeiros e disse ao antigo dono da fazenda que Raimundo, o neto, que ela segurava pelas mãozinhas naquele momento, era filho do estupro que ele, o temido Medeiros, cometera com sua filha Rita, aquela que sumiu no mundo depois de não suportar tanta dor e deixou o filho aos cuidados da mãe. O velho Medeiros ficou sem reação, mas viu que os olhos do menino eram como os dele. Aquilo bastava e, a partir daquela data, Raimundo foi sendo criado na casa grande da fazenda como se fosse da família, mas precisava chamar o pai de patrão.  

- E o que o patrão acha dessa história de quilombolas? - perguntava Firmino a Raimundo.

- O patrão diz pra gente só espiar esses movimento e, se for preciso, a gente entra em ação e dá um susto nesses cabra véio.

O negrinho sabido a quem ele se referia era Nando que, quando começou a se envolver nas atividades do sindicato dos trabalhadores rurais, ouviu alguém falar de um direito que algumas comunidades poderiam ter de acordo com algumas novas leis do governo. 

- Pretos e pobres tendo direito? Ele ficou pensativo no começo.  Achava que gente como ele só tinha era dever. Trabalhar, tentar não ser parado pela polícia, levar o alimento pra casa, viver com a constante sensação de ser um problema. E, agora, essa história de que preto pode ter direito à terra. Ele achou até graça e riu sozinho com o brilho do corpo todo. 

Ao longo dos dias, mesmo não tendo estudado mais do que o Ensino Fundamental, cismou que ia conhecer mais sobre aqueles tais documentos que os companheiros falavam quando ele ia para esses encontros. Tinha quase trinta anos quando conheceu o movimento Quilombola. As reuniões em que ouvia sobre isso aconteciam esporadicamente e sempre que a lida na roça não lhe exigia tanto, ele fazia aquele trajeto comunidade-cidade e ia aos encontros. Quando voltava, sempre com a cabeça fervilhando de possíveis começos, reunia os moradores da comunidade para partilhar o que havia aprendido. Para Nando, saber de tudo aquilo sozinho não tinha sentido e, mais do que isso, compreendeu, ainda nos mutirões da roça, que muitas mãos (s)arando a terra e jogando as sementes eram sempre mais produtivas do que o trabalho de uma só pessoa.  

Quando Medeiros, o suposto dono de todas aquelas terras, começou a perceber que havia um burburinho se formando por aquelas bandas, sentiu-se ameaçado. Primeiro, o sentimento foi de consternação, como sempre é sabido acontecer nas mentes que se acham grandes salvadoras das almas frágeis. Como era possível que essas pessoas que ele havia “permitido” plantar em sua terra por tanto tempo, gente que ele ajudava a conseguir uma consulta com algum médico na capital, mesmo que em troca de um voto durante as eleições agora estivesse “se voltando contra mim?”. Depois, o ódio semeado brotou. 

- Bando de ingratos! Deixou-se pensar em alta voz enquanto ia tecendo tramas sobre como se livrar daquele problema que vinha tirando seu sono. 

As faces da lua se transmudaram várias vezes. A chuva veio e, com ela, a alegria pelo plantio do milho e do feijão. As terras úmidas sinalizavam que haveria mesa farta de grãos. Alguns corpos também viveram esse momento de modificações. Fartura de gentes. Zaila e Nando estavam cada vez mais próximos, dividindo peles, almas, lutas, sonhos de futuro e de liberdade. Terra fértil para novas sementes.

Zaila se descobriu grávida. Já havia terminado o curso e decidiu voltar a viver na comunidade, agora sendo professora na escolinha em que ela mesma havia aprendido as primeiras letras. O anúncio da barriga que crescia deixava os moradores cada vez mais animados por saber que o casal tão adorado por todos estava aumentando a família. 

Num sábado qualquer, quando o dia ia clarecendo, homens, mulheres e crianças se levantaram e começaram a construir a casa de Zaila e Nando que, felizes, ajudavam no preparo do barro, na quebra das madeiras que seriam parte da estrutura e na escolha das palhas do telhado. O lar pronto. O bebê esperando seu momento. Tudo estava em seu devido lugar. 

Chegando o dia da primeira audiência pública na capital sobre a decisão da titularidade das terras, Nando beijou Zaila e seguiu feliz junto com outros companheiros de luta no pau-de-arara que fazia o trajeto cruzando a estrada em pouco mais de oito horas. 

Zaila levantou-se poucas horas depois do beijo-despertador sentindo as dores de que tanto ouvira falar. Caminhou devagarinho até a casa da mãe que se apressou em mandar o filho caçula chamar Mãe Inaê. O menino, ainda tonto de sono, conseguiu as forças de que precisava para correr até o outro lado da comunidade.

Na volta para casa depois da audiência que nada resolveu, ao contrário, só exaltou os ânimos das partes envolvidas na disputa, o grupo de quilombolas ia no caminho de regresso contando histórias “daqueles tempos” e sorrindo quando, de repente, o caminhão foi diminuindo a velocidade até parar completamente. Ainda estavam na metade do caminho para casa. O que seria? A dezena de homens e mulheres sentiu o mesmo arrepio de quem vê a vida com a fé nos invisíveis e encantados. Aquela voz grossa que eles já conheciam exigiu que Nando descesse do caminhão sozinho. Era Raimundo. As mulheres começaram a gritar desesperadas acordando memórias antes adormecidas e os homens rapidamente ficaram de pé, dispostos a pular na estrada de barro e começar uma luta, mas desistiram quando Nando disse que aquilo não era necessário. Raimundo estava acompanhado de um bando fortemente armado como ele. Nando pulou na terra. 

A terra.

Era por causa dela que ele havia chegado até ali. Afastou-se do caminhão e seguiu lentamente em direção ao grupo de homens, o coração estava acelerado, mas havia paz, havia silêncio. Foi quando Raimundo, sem nem ao menos descer do cavalo, lhe acertou um tiro na cabeça. Antes que o corpo de Nando pudesse tocar o chão, Mãe Inaê tocou o corpinho de Dandara que, em silêncio no colo de Zaila-mãe, pôde sentir todo o calor do mundo.


*Conto publicado originalmente no Cadernos Negros, volume 42 que, após intenso processo de seleção e editoração, foi lançado em dezembro de 2019, em São Paulo. O mesmo livro foi finalista do Jabuti em 2020.




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