sexta-feira, 28 de julho de 2023

De sonhos e peles feitos somos: sobre Dinho e Moçambique, e eu e você

 


O desejo de conhecer histórias sempre aparece como um motor de minhas andanças. Pessoas como eu e você que, de repente, se tornam protagonistas de suas vidas: superam uma doença, cruzam fronteiras em busca de sonhos outros, abandonam um (des)amor, guardam o luto após uma perda dolorosa… Para além dessa pele que nos envolve, o que corre dentro de nós são sempre histórias, as nossas, a dos outros e as que tomamos emprestado de outras vozes como se nossas fossem. 

Quando cursava a graduação em Letras, ainda no Rio de Janeiro, um dia, uma de minhas professoras exibiu para a turma o documentário “Língua: vidas em Português”, dirigido por Victor Lopes, cineasta português, nascido em Moçambique e radicado no Brasil. Dentre tantas histórias que se desdobravam diante de nós, tendo a língua portuguesa como esse elo em comum, foi a história de Dinho, um jovem quase adolescente, moçambicano, que morava no Grande Hotel, na Beira. Ele era um artista, fazia canções no estilo rap denunciando a desigualdade social e, apesar de tão jovem, Dinho ia ser pai.

Quase uma década após conhecer a história de Dinho, pude estar em frente ao Grande Hotel, na Beira, durante minha segunda viagem a Moz, como carinhosamente chamamos Moçambique. Por uma dica de Rebecca Aletheia, uma enfermeira negra viajante, que me abrigou em sua casa naqueles dias, tomei uma txopela, um dos transportes que circulam pelas ruas de Moz, uma moto com um espaço atrás para até dois passageiros. O guia foi me levando aos principais pontos turísticos da Beira e, quando vi, estávamos em frente ao Grande Hotel. Imenso hotel. A construção localizada de frente para o mar, um prédio há muitos anos abandonado, abrigo para milhares de moçambicanos e moçambicanas que não têm para onde ir, guarda sob sua arquitetura, ainda imponente, vozes e peles e histórias diversas. Fiquei por ali, admirando o mar e ouvindo o barulho das crianças que brincavam no pátio do Grande Hotel, enquanto outras se banhavam no mar.

A poucos passos de mim estava um casal muito jovem sentado sobre uma mureta, abraços e admirando o pôr do sol. Eu tentava admirá-los um pouco, mas mantinha os olhos fixos na beleza do grande Hotel. Entre o cafuné, os abraços, os beijos apaixonados e as risadas com som de futuro, o que me chamava atenção era a blusa do Brasil que o rapaz vestia. Encorajada por esse tecido que, por vezes, também pode ser lido como uma bandeira, me aproximei e disse que era brasileira. Conversamos um pouco. Ele já havia morado em Manaus, onde trabalhou por um período até voltar para os braços de sua amada, que sorria ao parecer surpresa em descobrir ter sido o motivo de uma viagem de volta. Ficamos ali, os três, trocando sorrisos cúmplices e histórias sobre um país do qual eu havia acabado de sair e para onde ele queria um dia, quem sabe, voltar.

Quando o sol se pôs, fui me despedindo sem querer tomar mais o tempo dos meus novos amigos. Fiquei um tempo ainda por ali pensando nas histórias que eu trazia em minha bagagem e sobre minha pele, que já começa a marcar a passagem do tempo enquanto meus cabelos tornam-se brancos. Olhei uma última vez o Grande Hotel antes de continuar a caminhar e pensei em Dinho, o jovem do vídeo, que agora deveria ser um homem, me lembrei de sua namorada, da criança que eles esperavam, do quanto a história dele era parecida com a história de tantos meninos negros de meu país. Será que Dinho ainda continuava cantando suas músicas e imaginando outros futuros? Fui embora com a dúvida pairando no ar. Essa era uma boa desculpa para voltar sempre a Moçambique e, ao conhecer tantas outras vozes, peles e histórias tão parecidas com as minhas, conhecer mais de mim e de meu país.

Anos depois, publiquei o livro Aya'ba e um dos poemas é sobre aquele casal d ejovens a admirar o amar. Reproduzo o texto aqui:


de cor de pele e sonhos iguais somos feitos

a camisa do Brasil

em frente ao Grande Hotel

promessa do beijo de Bindelo

de sonhos abandonados feitos somos

Sara segue acreditando

e a camisa seca ao vento

à beira-mar


de sonhos reconstruídos feitos somos

costura a camisa com carinho

anseia pela volta dele

linha forte no front

suspensa ou submersa

em verdade, vos digo,

sempre a mesma direção









2 comentários:

Dária disse...

Espero que vc volte e os reencontre.

Valéria Lourenço disse...

Sim, Daria. A vontade de voltar sempre é imensa. Amo aquele país. Obrigada pela leitura.