segunda-feira, 31 de julho de 2023

Conto "Sementes"



Dedicado à memória de senhor Nenê Lourenço e a todos (as) quilombolas das Queimadas, Crateús, Ceará, e do Brasil.

Cada vez que Zaila gritava, parecia que a criança se assustava e retornava para o universo que era a barriga da mãe. Dona Inaê, a doutora da comunidade, veio fazer o parto e dar o conforto para a família que estava tão aflita naquele momento. Além de curar cabeças desajustadas, remendar corações partidos e encontrar destinos perdidos, sempre era aquela preta velha quem amparava as crianças que fariam “a travessia”, como ela fazia questão de dizer. Antes que cada ser humano abrisse os olhos pela primeira vez, acordasse o mundo com seu grito e sentisse o calor do colo da mulher que o havia parido, precisava passar pelas mãos de Mãe Inaê. 

Depois que alguma alma fizera o esforço de caminhar do centro da comunidade até sua casa, um lugar isolado, bem mais perto da mata fechada e do riacho, a fonte da água da vida daquele lugar, Mãe Inaê sempre podia adivinhar que se tratava de caso de vida-morte. Em geral, eram mais vidas, mesmo quando morte era. Os nascimentos na comunidade se davam aos montes, enquanto os velhos, agarrados àquele chão, teimavam em viver. Todos os anos, eram cerca de dez a vinte crianças que ela segurava e, por isso, era considerada a mãe de quase todas as pessoas que ali viviam.

Dizia que o ofício tinha sido aprendido observando a mãe partejar. Nunca havia frequentado a escola, não sabia ler, e não sabia para quê aquilo era preciso. Todos os dias lia as histórias  espalhadas pelos rostos das gentes. Às vezes, queria que a neta escrevesse as rezas que ela trazia decoradas no coração, mas logo o pensamento se debandava para outro lugar e ela achava que aquilo era uma bobagem. Para quê anotar em um caderninho a maior herança de sua vida? A memória ainda podia conectar passados e montar fragmentos aparentemente sem sentido. O seu patrimônio não estava escrito em nenhum diploma pendurado na parede de barro de sua sala, nem em bens materiais acumulados. Era o matrimônio cotidiano com as vidas que a rodeavam, a voz de cada uma daquelas pessoas que a conheciam e por ela mantinham respeito e admiração, que a tornavam forte. 

Zaila continuava a gritar. Era magrinha, pequenina, pretinha como uma jabuticaba, não aparentava ter mais de 15 anos, mas estava perto de três décadas de resistência. O corpo tão frágil era capaz de contar histórias de enfrentamento cotidianos para que aquela mulher estivesse ali, a ponto de plantar mais uma muda de esperança nesse mundo de tanta dor. Após desistir de estudar para se dedicar ao trabalho na roça, a nova professora na escola da comunidade, a única funcionária que a prefeitura havia mandado naquele ano, a incentivou a terminar seus estudos na capital. Zaila, mesmo com muito medo, seguiu aquela voz interior que, às vezes, chamamos de destino e colamos à pele como uma marca que nos persegue pra nos lembrar todos os dias dos sonhos que queremos realizar. Seguiu. Sobre-viveu trabalhando em “casas de família”, com patroas que a deixavam estudar, mas que, em troca, exigiam que ela realizasse todas as tarefas domésticas. Zaila terminou o ensino médio e descobriu que tinha algo além, a universidade. As longas noites acordada após o cansaço do dia não a fizeram desistir e ela ganhou uma vaga na maior universidade pública da região para estudar História.

Agora, sempre na cidade, nunca mais havia tido tempo de passar longos dias na comunidade. Mas vinha chegando uma data especial no calendário da sua gente, a festa no terreiro de Mãe Maria. Foi lá que Zaila percebeu um sentimento diferente modificando a amizade entre ela e Nando, seu primo. As mães de Zaila e de Nando, irmãs, quando descobriram o que estava acontecendo, decidiram não interferir, afinal, dentre todas as famílias que ali viviam, a maioria havia se formado pelo amor de primos com primas, naquela fase da vida em que um simples olhar é capaz de fazer o coração acelerar, as pernas tremerem e crença de que tudo é eterno se torna maior. 

Zaila e Nando sempre foram muito próximos, mas aquele sentimento aumentou quando ela começou a ir para casa aos finais de semana e os dois gastavam horas juntos cuidando do terreiro de Mãe Maria, varrendo o quintal, regando as plantas, lavando o alguidar. Era nesse mesmo espaço que a Associação de Moradores da Comunidade se reunia para discutir estratégias de enfrentamento aos desmandos do fazendeiro da região que alegava ser dono das terras em que a comunidade vivia desde sempre. A maioria dos moradores nunca tinha conhecido outras paisagens e até repetiam a mesma história: haviam trabalhado naquelas terras, plantando, colhendo, criando pequenos animais e cultivando suas ervas e, com o passar dos anos, construíram “com as próprias mãos”, como diziam, a única escola da comunidade.

Mas nem tudo estava em seu lugar. O velho Raimundo, capataz da fazenda desde a juventude, vivia fazendo ameaças àquelas vidas quando rodeava o vilarejo a cavalo e fazia questão de mostrar a espingarda que trazia pendurada rente ao corpo. Nunca fazia o trajeto só, estava sempre acompanhado de algum outro homem. Quando aquele grupo de pretos mais jovens começou a sair da comunidade, Raimundo, assim como seu patrão, achou que os problemas começaram. 

- Depois que aquele negrinho andou inventando essa moda de participar daquelas reuniões na capital, tá se achando muito sabido e veio com uma uma história de que esses preto são dono dessas terra tudinho. 

Ele falava com a voz grossa, mascando um pouco de fumo no canto da boca, o que lhe dava um ar ainda mais sisudo, além do chapéu que usava cobrindo parte dos olhos. Os mais antigos diziam que sua avó, Dona Elisa, antiga moradora da comunidade foi quem o criou até os cinco anos de idade e havia ficado depressiva após a fuga da filha única. Segundo a história oral, antes de morrer, a anciã foi até a

casa dos Medeiros e disse ao antigo dono da fazenda que Raimundo, o neto, que ela segurava pelas mãozinhas naquele momento, era filho do estupro que ele, o temido Medeiros, cometera com sua filha Rita, aquela que sumiu no mundo depois de não suportar tanta dor e deixou o filho aos cuidados da mãe. O velho Medeiros ficou sem reação, mas viu que os olhos do menino eram como os dele. Aquilo bastava e, a partir daquela data, Raimundo foi sendo criado na casa grande da fazenda como se fosse da família, mas precisava chamar o pai de patrão.  

- E o que o patrão acha dessa história de quilombolas? - perguntava Firmino a Raimundo.

- O patrão diz pra gente só espiar esses movimento e, se for preciso, a gente entra em ação e dá um susto nesses cabra véio.

O negrinho sabido a quem ele se referia era Nando que, quando começou a se envolver nas atividades do sindicato dos trabalhadores rurais, ouviu alguém falar de um direito que algumas comunidades poderiam ter de acordo com algumas novas leis do governo. 

- Pretos e pobres tendo direito? Ele ficou pensativo no começo.  Achava que gente como ele só tinha era dever. Trabalhar, tentar não ser parado pela polícia, levar o alimento pra casa, viver com a constante sensação de ser um problema. E, agora, essa história de que preto pode ter direito à terra. Ele achou até graça e riu sozinho com o brilho do corpo todo. 

Ao longo dos dias, mesmo não tendo estudado mais do que o Ensino Fundamental, cismou que ia conhecer mais sobre aqueles tais documentos que os companheiros falavam quando ele ia para esses encontros. Tinha quase trinta anos quando conheceu o movimento Quilombola. As reuniões em que ouvia sobre isso aconteciam esporadicamente e sempre que a lida na roça não lhe exigia tanto, ele fazia aquele trajeto comunidade-cidade e ia aos encontros. Quando voltava, sempre com a cabeça fervilhando de possíveis começos, reunia os moradores da comunidade para partilhar o que havia aprendido. Para Nando, saber de tudo aquilo sozinho não tinha sentido e, mais do que isso, compreendeu, ainda nos mutirões da roça, que muitas mãos (s)arando a terra e jogando as sementes eram sempre mais produtivas do que o trabalho de uma só pessoa.  

Quando Medeiros, o suposto dono de todas aquelas terras, começou a perceber que havia um burburinho se formando por aquelas bandas, sentiu-se ameaçado. Primeiro, o sentimento foi de consternação, como sempre é sabido acontecer nas mentes que se acham grandes salvadoras das almas frágeis. Como era possível que essas pessoas que ele havia “permitido” plantar em sua terra por tanto tempo, gente que ele ajudava a conseguir uma consulta com algum médico na capital, mesmo que em troca de um voto durante as eleições agora estivesse “se voltando contra mim?”. Depois, o ódio semeado brotou. 

- Bando de ingratos! Deixou-se pensar em alta voz enquanto ia tecendo tramas sobre como se livrar daquele problema que vinha tirando seu sono. 

As faces da lua se transmudaram várias vezes. A chuva veio e, com ela, a alegria pelo plantio do milho e do feijão. As terras úmidas sinalizavam que haveria mesa farta de grãos. Alguns corpos também viveram esse momento de modificações. Fartura de gentes. Zaila e Nando estavam cada vez mais próximos, dividindo peles, almas, lutas, sonhos de futuro e de liberdade. Terra fértil para novas sementes.

Zaila se descobriu grávida. Já havia terminado o curso e decidiu voltar a viver na comunidade, agora sendo professora na escolinha em que ela mesma havia aprendido as primeiras letras. O anúncio da barriga que crescia deixava os moradores cada vez mais animados por saber que o casal tão adorado por todos estava aumentando a família. 

Num sábado qualquer, quando o dia ia clarecendo, homens, mulheres e crianças se levantaram e começaram a construir a casa de Zaila e Nando que, felizes, ajudavam no preparo do barro, na quebra das madeiras que seriam parte da estrutura e na escolha das palhas do telhado. O lar pronto. O bebê esperando seu momento. Tudo estava em seu devido lugar. 

Chegando o dia da primeira audiência pública na capital sobre a decisão da titularidade das terras, Nando beijou Zaila e seguiu feliz junto com outros companheiros de luta no pau-de-arara que fazia o trajeto cruzando a estrada em pouco mais de oito horas. 

Zaila levantou-se poucas horas depois do beijo-despertador sentindo as dores de que tanto ouvira falar. Caminhou devagarinho até a casa da mãe que se apressou em mandar o filho caçula chamar Mãe Inaê. O menino, ainda tonto de sono, conseguiu as forças de que precisava para correr até o outro lado da comunidade.

Na volta para casa depois da audiência que nada resolveu, ao contrário, só exaltou os ânimos das partes envolvidas na disputa, o grupo de quilombolas ia no caminho de regresso contando histórias “daqueles tempos” e sorrindo quando, de repente, o caminhão foi diminuindo a velocidade até parar completamente. Ainda estavam na metade do caminho para casa. O que seria? A dezena de homens e mulheres sentiu o mesmo arrepio de quem vê a vida com a fé nos invisíveis e encantados. Aquela voz grossa que eles já conheciam exigiu que Nando descesse do caminhão sozinho. Era Raimundo. As mulheres começaram a gritar desesperadas acordando memórias antes adormecidas e os homens rapidamente ficaram de pé, dispostos a pular na estrada de barro e começar uma luta, mas desistiram quando Nando disse que aquilo não era necessário. Raimundo estava acompanhado de um bando fortemente armado como ele. Nando pulou na terra. 

A terra.

Era por causa dela que ele havia chegado até ali. Afastou-se do caminhão e seguiu lentamente em direção ao grupo de homens, o coração estava acelerado, mas havia paz, havia silêncio. Foi quando Raimundo, sem nem ao menos descer do cavalo, lhe acertou um tiro na cabeça. Antes que o corpo de Nando pudesse tocar o chão, Mãe Inaê tocou o corpinho de Dandara que, em silêncio no colo de Zaila-mãe, pôde sentir todo o calor do mundo.


*Conto publicado originalmente no Cadernos Negros, volume 42 que, após intenso processo de seleção e editoração, foi lançado em dezembro de 2019, em São Paulo. O mesmo livro foi finalista do Jabuti em 2020.




sábado, 29 de julho de 2023

Tramando resistências capilares entre o Brasil e Moçambique


 

“[...] as de Zilhalha, a Oxaca e a Debeza, tinham o cabelo cortado rente, cenário favorável a comentários, porque tal moda incomum, nas terras de Lourenço Marques e arredores, só podia vir da África do Sul, onde os autóctones conservavam práticas de há séculos que os Ingleses, em sua forma de governar, toleravam e incentivavam, deixando que os naturais falarem e se alfabetizarem-se nas línguas [...]”. KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi; As mulheres do imperador. São Paulo: Kapulana, 2018. p.145)

 

A epígrafe escolhida para iniciar a resenha a seguir, excerto do romance Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do imperador, do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, traz, somente com uma breve análise dos cabelos de um grupo de mulheres, um retrato antropológico de Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique, atual Maputo. Neste caso, história, sociologia e antropologia se fundem no texto literário que temos em mãos e, com isso, há um alargamento de fronteiras disciplinares. O mesmo acontece com o livro Que beleza busca Vanda? Ensaio sobre a lida do cabelo crespo no Brasil e em Moçambique, de autoria da antropóloga e professora Denise da Costa. O texto é um convite para que o (a) leitor (a) se reencontre com uma das possibilidades de diálogo entre a literatura e outro campo de saber, a antropologia, neste caso, a “ficção etnográfica”, da qual a pesquisadora lança mão para construir sua escrita.

Nascida em Minas Gerais, onde recebeu o grau de Cientista social pela Universidade Federal de Minas Gerais, Denise Ferreira da Costa cursou mestrado em Antropologia Social na Universidade de Brasília e completou seu doutorado no mesmo curso e na mesma instituição. Atualmente, é professora adjunta do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, em Redenção, no Ceará. Tanto na graduação quanto no mestrado suas pesquisas estiverem concentradas no continente africano, com olhar especial para Moçambique. E, posteriormente, no doutorado, o país africano continuou sendo o foco de interesse da pesquisadora.

Resultado de sua tese de doutorado defendida em 2017, a leveza do título do livro pode ser encontrada na forma como a pesquisadora trança as “tramas capilares” de mulheres do Brasil e de Moçambique (de lá) e, ao longo dos cinco capítulos “O início da trama”, “Trajetórias de Vanda”, “O sacrifício do corpo”, “As transformações” e “Agindo na internet”,  aborda, através da história de Vanda Cruz, personagem e entrevistada principal do trabalho, as lidas de mulheres brasileiras e moçambicanas no trato com seus cabelos crespos e cacheados.

No primeiro capítulo do livro “O início da trama”, Denise da Costa narra sua chegada à cidade de Maputo, onde esteve durante três períodos distintos entre os anos de 2011 e 2017, sua busca por mulheres que poderiam ser entrevistadas para seu trabalho e também questões práticas como a procura por um lugar para ficar durante sua estadia na cidade. É neste capítulo que temos uma etnografia da cidade de Maputo com suas divisões marcadas pelos contrastes socioespaciais e socioeconômicos, delimitadas, inclusive, na nomenclatura dos espaços. “De um lado, a cidade-cimento – centro e parte alta da cidade – e, de outro a cidade-caniço – periferia e parte baixa da cidade” (COSTA, 2019, p.31). No entanto, tal divisão não se limita às tramas da paisagem moçambicana. A mesma desigualdade é percebida pela pesquisadora entre o Plano Piloto e as Cidades-Satélite, em Brasília, um dos lócus de pesquisa da antropóloga no Brasil.

Apesar de o capítulo 2 “Trajetórias de Vanda”, ser intitulado com o nome da personagem e entrevistada principal do trabalho, as páginas desta secção trazem narrativas de outras mulheres negras e suas memórias de infância sobre o cabelo, principalmente, em relação às bonecas, em sua maioria brancas, sendo Barbie a mais famosa delas. Para além das bonecas, o cabelo, para as “mulheres-crianças” entrevistadas também é visto hoje como sinônimo de status. Esse é um dos motivos pelos quais, algumas moçambicanas alternam seus penteados entre extensões, perucas, mechas e tranças, brincando com seus cabelos como se brincassem com aquelas bonecas de sua infância, mesmo que tão diferentes delas. E é ainda neste capítulo que a antropóloga reflete sobre as possibilidades que a atual geração tem a sua disposição quando falamos de boneca, já que têm aparecido no mercado global produtos diversificados para atender tantas demandas como é o caso das bonecas negras.

No capítulo “O sacrifício do corpo” acompanhamos o trabalho árduo, a “lida” capilar diária a que muitas mulheres negras se submetem, por vezes, sacrificando dinheiro e tempo para alcançar a tão sonhada leveza citada por Vanda Cruz. E, independentemente, da textura capilar, há uma hierarquia quando nos referimos a cabelos crespos. Enquanto termos como “retoque”, “desfrisar”, “carapinha”, “cabelo ruim”, “cabelo bom”, “cabelo pesado”, “cabelo leve” marcam alguns termos dessa hierarquia, no caso de Denise da Costa, “Ter os cabelos cacheados me classificava como mestiça” (COSTA, 2019, p.98). 

As mudanças pelas quais passam os cabelos crespos embasam os debates do capítulo “As transformações”. É aqui que termos como Big Chop - BC ou grande corte, transição capilar e preconceito capilar são trazidos para o centro da análise. Interessante observar que também neste capítulo podemos perceber o quanto o corte do cabelo com química e o movimento de assumir as raízes crespas e cacheadas podem ser demonstrações de aceitação e, por isso, de amor, para muitas mulheres que cresceram ouvindo o quanto seus cabelos não eram o padrão de beleza. 

O último capítulo do livro “Agindo na internet” mostra o quanto a crescente militância estética de mulheres negras moçambicanas e brasileiras nas redes sociais contribuiu para a aceitação dessas mulheres e de seus cabelos. Em alguns casos, as dicas de receitas caseiras e profissionais para cuidar das madeixas, os modos de lavar o cabelo, enfim, a lida capilar ganhava cada vez mais adeptos no mundo virtual, em plataformas como o YouTube e o Facebook, trazendo um protagonismo para esse grupo de mulheres que até então não se viam representadas de modo positivo nas mídias sociais. E, em alguns casos, esse agir estético-político virtual transformava-se em encontros reais e até eventos reunindo mulheres para debater sobre cabelos crespos e cacheados, mas não só, temas como identidade, história e pertencimento também passaram a fazer parte desses encontros que contavam com a presença de palestrantes negros e negros possibilitando um momento de autorrepresentatividade.  

Com o olhar de uma pesquisadora experiente que entende o processo da pesquisa como um momento entrelaçado a tantas mãos, Denise da Costa recupera textos de diversos (as) escritores (as) que já falaram sobre cabelo. Raul Lody, Nilma Lino Gomes, Maria da Consolação Lucinda e bell hooks são alguns dos teóricos convidados para tecer essa trama. Durante a leitura do livro, que, em muitos momentos nos aproxima de uma escrita literária, é possível perceber aproximações e afastamentos na forma como esses dois grupos de mulheres, brasileiras e moçambicanas, tão distantes geograficamente, enfrentam os mesmos desafios capilares e têm nos cabelos um duplo marcador o da negação e o da aceitação. Afinal, se é pelo cabelo que muitas mulheres vivenciam o primeiro processo de rejeição do que é ser negra, no caso do Brasil, é também pela mesma via que muitas recuperam sua autoestima, começam um processo de identificar-se culturalmente com determinados grupos e iniciam um resgate de suas raízes, tanto capilares quanto culturais e, com isso, cabeças continuam sendo feitas.


COSTA, Denise da. Que leveza busca Vanda? Ensaio sobre a lida do cabelo crespo no Brasil e em Moçambique. Belo Horizonte: Letramento, 2019.





sexta-feira, 28 de julho de 2023

De sonhos e peles feitos somos: sobre Dinho e Moçambique, e eu e você

 


O desejo de conhecer histórias sempre aparece como um motor de minhas andanças. Pessoas como eu e você que, de repente, se tornam protagonistas de suas vidas: superam uma doença, cruzam fronteiras em busca de sonhos outros, abandonam um (des)amor, guardam o luto após uma perda dolorosa… Para além dessa pele que nos envolve, o que corre dentro de nós são sempre histórias, as nossas, a dos outros e as que tomamos emprestado de outras vozes como se nossas fossem. 

Quando cursava a graduação em Letras, ainda no Rio de Janeiro, um dia, uma de minhas professoras exibiu para a turma o documentário “Língua: vidas em Português”, dirigido por Victor Lopes, cineasta português, nascido em Moçambique e radicado no Brasil. Dentre tantas histórias que se desdobravam diante de nós, tendo a língua portuguesa como esse elo em comum, foi a história de Dinho, um jovem quase adolescente, moçambicano, que morava no Grande Hotel, na Beira. Ele era um artista, fazia canções no estilo rap denunciando a desigualdade social e, apesar de tão jovem, Dinho ia ser pai.

Quase uma década após conhecer a história de Dinho, pude estar em frente ao Grande Hotel, na Beira, durante minha segunda viagem a Moz, como carinhosamente chamamos Moçambique. Por uma dica de Rebecca Aletheia, uma enfermeira negra viajante, que me abrigou em sua casa naqueles dias, tomei uma txopela, um dos transportes que circulam pelas ruas de Moz, uma moto com um espaço atrás para até dois passageiros. O guia foi me levando aos principais pontos turísticos da Beira e, quando vi, estávamos em frente ao Grande Hotel. Imenso hotel. A construção localizada de frente para o mar, um prédio há muitos anos abandonado, abrigo para milhares de moçambicanos e moçambicanas que não têm para onde ir, guarda sob sua arquitetura, ainda imponente, vozes e peles e histórias diversas. Fiquei por ali, admirando o mar e ouvindo o barulho das crianças que brincavam no pátio do Grande Hotel, enquanto outras se banhavam no mar.

A poucos passos de mim estava um casal muito jovem sentado sobre uma mureta, abraços e admirando o pôr do sol. Eu tentava admirá-los um pouco, mas mantinha os olhos fixos na beleza do grande Hotel. Entre o cafuné, os abraços, os beijos apaixonados e as risadas com som de futuro, o que me chamava atenção era a blusa do Brasil que o rapaz vestia. Encorajada por esse tecido que, por vezes, também pode ser lido como uma bandeira, me aproximei e disse que era brasileira. Conversamos um pouco. Ele já havia morado em Manaus, onde trabalhou por um período até voltar para os braços de sua amada, que sorria ao parecer surpresa em descobrir ter sido o motivo de uma viagem de volta. Ficamos ali, os três, trocando sorrisos cúmplices e histórias sobre um país do qual eu havia acabado de sair e para onde ele queria um dia, quem sabe, voltar.

Quando o sol se pôs, fui me despedindo sem querer tomar mais o tempo dos meus novos amigos. Fiquei um tempo ainda por ali pensando nas histórias que eu trazia em minha bagagem e sobre minha pele, que já começa a marcar a passagem do tempo enquanto meus cabelos tornam-se brancos. Olhei uma última vez o Grande Hotel antes de continuar a caminhar e pensei em Dinho, o jovem do vídeo, que agora deveria ser um homem, me lembrei de sua namorada, da criança que eles esperavam, do quanto a história dele era parecida com a história de tantos meninos negros de meu país. Será que Dinho ainda continuava cantando suas músicas e imaginando outros futuros? Fui embora com a dúvida pairando no ar. Essa era uma boa desculpa para voltar sempre a Moçambique e, ao conhecer tantas outras vozes, peles e histórias tão parecidas com as minhas, conhecer mais de mim e de meu país.

Anos depois, publiquei o livro Aya'ba e um dos poemas é sobre aquele casal d ejovens a admirar o amar. Reproduzo o texto aqui:


de cor de pele e sonhos iguais somos feitos

a camisa do Brasil

em frente ao Grande Hotel

promessa do beijo de Bindelo

de sonhos abandonados feitos somos

Sara segue acreditando

e a camisa seca ao vento

à beira-mar


de sonhos reconstruídos feitos somos

costura a camisa com carinho

anseia pela volta dele

linha forte no front

suspensa ou submersa

em verdade, vos digo,

sempre a mesma direção









Do amor e seus riscos: leitura de "Mal dito coração", de Bruna Sonast

 



Quantas foram as vezes que tecemos conexões entre o amor e o coração? Essa ideia de que o ser amado e o amor estão abrigados nesse órgão guardado sob nosso peito é tão antiga quanto nossa existência. É ao coração que nos referimos quando estamos felizes por sermos amadas, mas é também ele que citamos quando as coisas não vão bem. Ah, esse maldito coração! É a este coração, tantas vezes incompreendido, que o livro Mal dito coração, de Bruna Sonast vai fazer referência.

Com texto de apresentação de Laís Eutália, poeta cearense que já nos alerta antes de iniciarmos as leituras dos poemas de Bruna que “amar é correr o risco”, Mal dito coração nos guia por uma espécie de trilha em que acompanhamos o nascimento da paixão, o desejo que cresce, o amor, e, depois, sua transformação em abandono, em separação, em término. Mas não se iluda, leitora, todo final pode ser um recomeço. E, assim, acontece no livro, tudo recomeça.

Bruna Sonast é natural do Ceará, produtora cultural com graduação em Letras e mestrado em Linguística Aplicada, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Além disso, realiza edição e revisão de livros literários e integra a baRRósas, uma coletiva feita por e para mulheres e artistas independentes, que realiza saraus e eventos literários em diversas áreas de Fortaleza, fora dos bairros considerados centrais. Publicou Vestígios (2020), por via independente, com nova impressão em 2021, organizou e participou com poemas em baRRósas: memória e poesia, publicado em 2021 pela editora Mirada. Também organizou Escritas do fim do mundo (2022), de forma independente.

O livro de Bruna Sonast nos convida a reflexões diversas desde o título, pass(e)ando pelo seu interior e nos possibilita que sejamos nós também construtoras desse fazer poético junto com ela. Ao marcar a palavra mal dito no título de forma separada  a poeta nos provoca a pensar nas possibilidades de leitura desta maldição que tanto relacionamos ao coração, logo, por vezes, ao amor. E há palavras mal ditas que proferimos no momento de dor por uma separação, uma perda amorosa, uma desilusão. Mas e quando amamos e estamos sendo amadas, será que sabemos falar bem deste coração, ou as palavras ainda não são bem ditas?

Como, por vezes, o amor está relacionado à paixão, é o poema “passional” que traremos para começar a ilustrar nossa conversa:

 

desejar

como quem se rende

e explode o país

(Sonast, 2022, p. 14).

 

Em poucas linhas, Bruna resume o que acontece conosco ao nos apaixonarmos: inicialmente, uma redenção, uma entrega, e, em seguida, a paixão é representada em toda intensidade na escolha da palavra “explode”. Ou seja, se antes há uma fraqueza deste corpo frente a tudo que chega de novo, depois, fortalecido, tudo é tão avassalador a ponto de nos dar coragem de explodir algo e, neste poema, um país. Aqui, podemos pensar em um país como uma metáfora para a ideia de nação. Afinal, é o país e tudo que está guardado sob esse manto da homogeneidade que, por vezes, nos violenta: o machismo, o patriarcado, o preconceito, uma única identidade. Assim, explodir um país soa como destruir todas as nossas certezas para começar algo novo.

Com ilustrações de Jéssica Lourença, mais uma artista cearense, Mal dito coração nos convida a preencher espaços em brancos deixados ali propositalmente pela autora. Como quem sabe que poesia é também silêncio, Bruna Sonast deixou páginas vazias ao longo do seu livro com convites para que a gente escreva ali. Desse modo, podemos nós, as leitoras, escrever nossos próprios poemas ou pensamentos que nos vêm ao longo da leitura do livro.

Ainda sob o efeito da paixão, o poema “antropofágica” sintetiza o desejo de ter o ser amado:

 

teu gosto

des co brin do

cada canto

da minha boca

(Sonast, 2022, p. 34)

 

Interessante aqui a inversão que é colocada em poucos versos. Não é mais a boca a descobrir gostos, mas sim o contrário, o gosto dessa outra pessoa que vem inaugurar os lábios do eu-lírico.

Em seguida, o amor se instala bem devagarinho e faz morada, mas quem está amando está sempre à espreita:

 

a risco

o bicho feio

que é o amor

cravou os dentes no meu estômago

(Sonast, 2022, p. 54)

 

O título do poema, “a risco” pode ser lido como arisco, ou seja, há desconfiança em relação à alguma situação, mas também pode ser interpretado como o risco diante do que se instalou dentro de mim. E, nesse caso, para além do coração, tenho agora um incômodo no estômago, outro órgão do corpo frequentemente citado quando falamos de nossas emoções. Assim, já reféns do amor, o risco da perda, de quebrar a cara, de nos decepcionarmos, pode nos deixar ariscas e inclusive chamar o amor como também chama a poeta “de bicho feio”. Ah, o amor sendo mal dito mais uma vez.

E depois de tudo isso, para onde vamos agora? Para a desilusão do amor. Para o que fica depois de um fim.

 

do que resta

 

o amor acabou

ficou só a vontade

estraçalhando por dentro

o osso

o oco

 

de tudo teu

que partiu

e permanece

 

minha obsessão

(Sonast, 2022, p. 66)

 

A sensação de perda, que faz com que o amor seja mal dito, é que está acima destacada. Após tantos momentos bons, do frio e das borboletas no estômago, do coração tão vermelho de amor, chega a desilusão. O vazio. No entanto, o poema afirma que outro sentimento “permanece”, a obsessão pelo que se amou. O outro se foi, partiu, mas esse desejo de reviver tudo fica, junto com a vontade de ter o ser amado.

No entanto, o sofrimento por amor não desfaz na poeta a vontade de amar de novo. Ao contrário, há que se continuar a tentar mais uma, mais uma, mais uma vez.

seguir o curso incerto

de desejar

tudo

outra vez

(SONAST, 2022, p.88).

 

O poema sem título retoma o desejo dos poemas iniciais do livro de Bruna Sonast e reafirma que a busca contínua por amor nos faz sermos ousadas e destemidas, fazer tudo “outra vez”.

Mal dito coração é um livro que poderia ser lido como um romance em prosa, dividido em quatro atos: o começo da paixão, o amor instalado, a decepção amorosa e, por fim, o recomeço. No entanto, para além de um ser amado, Bruna Sonast nos provoca a pensar em tudo que guardamos sob o escudo do coração para além do amor romântico entre um homem e uma mulher. Assim, a leitura dos poemas nos faz pensar em sonhos, em projetos que desejamos, nos empenhamos, conseguimos e, por vezes, nos decepcionamos; nos faz pensar no trabalho que tanto queríamos e não é exatamente como imaginávamos; nos lembra uma amizade desfeita; um curso, uma viagem ou algo em que investi tanto tempo e energia e, no fim, não foi como eu esperava, e meu coração ficou igualmente partido. Ou seja, no livro há muito sobre o amor entre duas pessoas, mas há também várias outras camadas de amor e de desejo que nos fazem, por vezes, mal dizer este coração bobo que, teimoso, recomeça sempre que pode.

SONAST, Bruna. Mal dito coração. Recife: Selo Mirada, 2022. 104 páginas. Revisão de Gílian Brito; coordenação editorial de Taciana Oliveira; diagramação de Rebeka Samyra. 

 



Reconstruindo meu blog

Oi, gente! 

Caramba, tanto tempo se passou e cá estou eu, de novo, reiniciando a escrita de um blog(ue). Eu pari este blog em 2010, assim que ingressei na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu e via aqui neste espaço uma oportunidade de dar espaço a minha voz. 

Bem, de lá pra cá, tanta coisa aconteceu. Fiz meu mestrado na Universidade Estadual do Maranhão, me tornei professora no IFCE campus Crateús e, desde 2021, sou doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Federal do Ceará. Publiquei mais alguns livros, escrevi mais um bocado de coisa que espero compartilhar com vocês por aqui, viajei bastante também, e isso se tornou matéria para a literatura que eu faço. É isso, este posta é só mais um convite para que a gente se encontre por aqui de vez em quando.

Um abraço.

Valéria Lourenço.