sábado, 29 de julho de 2023

Tramando resistências capilares entre o Brasil e Moçambique


 

“[...] as de Zilhalha, a Oxaca e a Debeza, tinham o cabelo cortado rente, cenário favorável a comentários, porque tal moda incomum, nas terras de Lourenço Marques e arredores, só podia vir da África do Sul, onde os autóctones conservavam práticas de há séculos que os Ingleses, em sua forma de governar, toleravam e incentivavam, deixando que os naturais falarem e se alfabetizarem-se nas línguas [...]”. KHOSA, Ungulani Ba Ka. Gungunhana: Ualalapi; As mulheres do imperador. São Paulo: Kapulana, 2018. p.145)

 

A epígrafe escolhida para iniciar a resenha a seguir, excerto do romance Gungunhana: Ualalapi e As mulheres do imperador, do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, traz, somente com uma breve análise dos cabelos de um grupo de mulheres, um retrato antropológico de Lourenço Marques, antiga capital de Moçambique, atual Maputo. Neste caso, história, sociologia e antropologia se fundem no texto literário que temos em mãos e, com isso, há um alargamento de fronteiras disciplinares. O mesmo acontece com o livro Que beleza busca Vanda? Ensaio sobre a lida do cabelo crespo no Brasil e em Moçambique, de autoria da antropóloga e professora Denise da Costa. O texto é um convite para que o (a) leitor (a) se reencontre com uma das possibilidades de diálogo entre a literatura e outro campo de saber, a antropologia, neste caso, a “ficção etnográfica”, da qual a pesquisadora lança mão para construir sua escrita.

Nascida em Minas Gerais, onde recebeu o grau de Cientista social pela Universidade Federal de Minas Gerais, Denise Ferreira da Costa cursou mestrado em Antropologia Social na Universidade de Brasília e completou seu doutorado no mesmo curso e na mesma instituição. Atualmente, é professora adjunta do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB, em Redenção, no Ceará. Tanto na graduação quanto no mestrado suas pesquisas estiverem concentradas no continente africano, com olhar especial para Moçambique. E, posteriormente, no doutorado, o país africano continuou sendo o foco de interesse da pesquisadora.

Resultado de sua tese de doutorado defendida em 2017, a leveza do título do livro pode ser encontrada na forma como a pesquisadora trança as “tramas capilares” de mulheres do Brasil e de Moçambique (de lá) e, ao longo dos cinco capítulos “O início da trama”, “Trajetórias de Vanda”, “O sacrifício do corpo”, “As transformações” e “Agindo na internet”,  aborda, através da história de Vanda Cruz, personagem e entrevistada principal do trabalho, as lidas de mulheres brasileiras e moçambicanas no trato com seus cabelos crespos e cacheados.

No primeiro capítulo do livro “O início da trama”, Denise da Costa narra sua chegada à cidade de Maputo, onde esteve durante três períodos distintos entre os anos de 2011 e 2017, sua busca por mulheres que poderiam ser entrevistadas para seu trabalho e também questões práticas como a procura por um lugar para ficar durante sua estadia na cidade. É neste capítulo que temos uma etnografia da cidade de Maputo com suas divisões marcadas pelos contrastes socioespaciais e socioeconômicos, delimitadas, inclusive, na nomenclatura dos espaços. “De um lado, a cidade-cimento – centro e parte alta da cidade – e, de outro a cidade-caniço – periferia e parte baixa da cidade” (COSTA, 2019, p.31). No entanto, tal divisão não se limita às tramas da paisagem moçambicana. A mesma desigualdade é percebida pela pesquisadora entre o Plano Piloto e as Cidades-Satélite, em Brasília, um dos lócus de pesquisa da antropóloga no Brasil.

Apesar de o capítulo 2 “Trajetórias de Vanda”, ser intitulado com o nome da personagem e entrevistada principal do trabalho, as páginas desta secção trazem narrativas de outras mulheres negras e suas memórias de infância sobre o cabelo, principalmente, em relação às bonecas, em sua maioria brancas, sendo Barbie a mais famosa delas. Para além das bonecas, o cabelo, para as “mulheres-crianças” entrevistadas também é visto hoje como sinônimo de status. Esse é um dos motivos pelos quais, algumas moçambicanas alternam seus penteados entre extensões, perucas, mechas e tranças, brincando com seus cabelos como se brincassem com aquelas bonecas de sua infância, mesmo que tão diferentes delas. E é ainda neste capítulo que a antropóloga reflete sobre as possibilidades que a atual geração tem a sua disposição quando falamos de boneca, já que têm aparecido no mercado global produtos diversificados para atender tantas demandas como é o caso das bonecas negras.

No capítulo “O sacrifício do corpo” acompanhamos o trabalho árduo, a “lida” capilar diária a que muitas mulheres negras se submetem, por vezes, sacrificando dinheiro e tempo para alcançar a tão sonhada leveza citada por Vanda Cruz. E, independentemente, da textura capilar, há uma hierarquia quando nos referimos a cabelos crespos. Enquanto termos como “retoque”, “desfrisar”, “carapinha”, “cabelo ruim”, “cabelo bom”, “cabelo pesado”, “cabelo leve” marcam alguns termos dessa hierarquia, no caso de Denise da Costa, “Ter os cabelos cacheados me classificava como mestiça” (COSTA, 2019, p.98). 

As mudanças pelas quais passam os cabelos crespos embasam os debates do capítulo “As transformações”. É aqui que termos como Big Chop - BC ou grande corte, transição capilar e preconceito capilar são trazidos para o centro da análise. Interessante observar que também neste capítulo podemos perceber o quanto o corte do cabelo com química e o movimento de assumir as raízes crespas e cacheadas podem ser demonstrações de aceitação e, por isso, de amor, para muitas mulheres que cresceram ouvindo o quanto seus cabelos não eram o padrão de beleza. 

O último capítulo do livro “Agindo na internet” mostra o quanto a crescente militância estética de mulheres negras moçambicanas e brasileiras nas redes sociais contribuiu para a aceitação dessas mulheres e de seus cabelos. Em alguns casos, as dicas de receitas caseiras e profissionais para cuidar das madeixas, os modos de lavar o cabelo, enfim, a lida capilar ganhava cada vez mais adeptos no mundo virtual, em plataformas como o YouTube e o Facebook, trazendo um protagonismo para esse grupo de mulheres que até então não se viam representadas de modo positivo nas mídias sociais. E, em alguns casos, esse agir estético-político virtual transformava-se em encontros reais e até eventos reunindo mulheres para debater sobre cabelos crespos e cacheados, mas não só, temas como identidade, história e pertencimento também passaram a fazer parte desses encontros que contavam com a presença de palestrantes negros e negros possibilitando um momento de autorrepresentatividade.  

Com o olhar de uma pesquisadora experiente que entende o processo da pesquisa como um momento entrelaçado a tantas mãos, Denise da Costa recupera textos de diversos (as) escritores (as) que já falaram sobre cabelo. Raul Lody, Nilma Lino Gomes, Maria da Consolação Lucinda e bell hooks são alguns dos teóricos convidados para tecer essa trama. Durante a leitura do livro, que, em muitos momentos nos aproxima de uma escrita literária, é possível perceber aproximações e afastamentos na forma como esses dois grupos de mulheres, brasileiras e moçambicanas, tão distantes geograficamente, enfrentam os mesmos desafios capilares e têm nos cabelos um duplo marcador o da negação e o da aceitação. Afinal, se é pelo cabelo que muitas mulheres vivenciam o primeiro processo de rejeição do que é ser negra, no caso do Brasil, é também pela mesma via que muitas recuperam sua autoestima, começam um processo de identificar-se culturalmente com determinados grupos e iniciam um resgate de suas raízes, tanto capilares quanto culturais e, com isso, cabeças continuam sendo feitas.


COSTA, Denise da. Que leveza busca Vanda? Ensaio sobre a lida do cabelo crespo no Brasil e em Moçambique. Belo Horizonte: Letramento, 2019.





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