sábado, 23 de setembro de 2023

“O que mais me dói é a destruição dos sonhos do meu filho”: o genocídio que assombra a Chapada Diamantina e a resistência que canta 


Dedicado ao meu amigo Cláudio Dourado (antropólogo da CPT/Bahia).




Foto: Quilombo do Remanso, Chapada Diamantina, Bahia (Valéria Lourenço/2022)


“O que mais me dói é a destruição dos sonhos do meu filho”. Essa foi uma das frases que ouvi de Catarina, em sua cozinha, na comunidade quilombola da Bocaina, enquanto comia uma tapioca com coco e tomava um suco de maracujá selvagem. Dias antes, na comunidade quilombola de Iúna, me emocionei quando dona Jandira, com aquele olhar firme, apesar do corpo paralisado por um AVC, disse querer justiça pelo assassinato de dois filhos e de um neto, na chacina que ocorreu na comunidade em 2017 e que exterminou outras 4 vidas. Estou falando de duas mulheres negras que, com lágrimas, ousam acreditar em um futuro digno para seus filhos e netos. Esses dois episódios aconteceram na Chapada Diamantina, Bahia, mas são só uma síntese muito rasa do que vivi e ouvi por lá durante mais de quinze dias. 

Cheguei em Capim Grosso, Bahia, por volta das 5h da manhã do dia 26 de julho. Meu embarque foi em Teresina, Piauí, no dia anterior, às 14h, mas o ônibus já vinha de Sobral, no Ceará, estado em que vivo hoje, e seguiria para o Rio de Janeiro, estado que me viu nascer e crescer. Chovia. Fazia frio demais. E, durante todo tempo que fiquei na rodoviária esperando meu amigo me buscar às 6h da manhã para irmos até Ruy Barbosa, minha parada provisória em sua casa, por alguns dias, observava aquele monstro branco à minha frente. Era a hélice de uma das centenas de torres de energia eólica que eu encontraria pelo caminho durante meus dias na Chapada. 

Não sei vocês, mas eu ainda não tinha visto um daqueles artefatos tão de perto. Interessante que, quando a gente olha as torres de energia eólica de longe, elas parecem cataventos tão branquinhos e inofensivos como aqueles de papel que a gente fazia na escola durante a infância e ele girava com o sopro do vento que saía de nossos lábios. Mas, não se enganem! As torres de energia eólica têm uma altura que varia de 110 a 130 metros e, em geral, os locais usados para as instalações desses parques eólicos, causam deslocamento de comunidades inteiras, destruição de laços coletivos e de modos de vida ancestrais. Bem, mas eu ainda não sabia que durante meus dias na Chapada Diamantina encontraria muito mais do que as torres. Conheci diversos quilombos, histórias de luta, de resistência, de chacina, de destruição do meio ambiente e encontrei muitos mais monstros como aquela hélice branca.

Em poucos dias circulando pela Chapada, pude acompanhar de perto um grupo de trabalho da Comissão Pastoral da Terra na região. Esses agentes estavam mobilizando algumas comunidades quilombolas para estarem juntas, em poucos dias, homenageando os parentes e amigos dos jovens assassinados numa chacina no quilombo de Iúna, no ano de 2017. Assim, andamos por Lençóis, Piatã, Seabra e visitei as comunidades quilombolas de Remanso, Iúna, Riacho do Mel, Morro Redondo, Bocaina e Gerais. 

Só estive na Bahia poucas vezes na vida, mas sempre em Salvador e região próxima. Nunca havia conhecido a Chapada Diamantina, apesar de já ter ouvido falar de alguns lugares muito famosos pelo turismo como o morro do Pai Inácio e Lençóis. No entanto, subvertendo essa perspectiva turística, vivi a Chapada profunda, aquela que não aparece nos sites ou notícias da grande mídia: a Chapada dos negros, indígenas, quilombolas.

O mapa da Bahia sempre me chamou atenção por ser quase uma réplica do mapa do Brasil e parto daqui para continuar minhas reflexões. O que vi na Chapada Diamantina foi uma espécie de retrato em 3x4 do que temos acompanhado em outras partes de todo território brasileiro e aqui falo especificamente das comunidades quilombolas pelas quais tenho me deslocado desde 2012, seja no Rio de Janeiro, no Ceará ou no Maranhão: os grandes empreendimentos, na maioria das vezes, com o aval e de mãos dadas com o estado brasileiro, avança de modo voraz, ceifando vidas, seja através da violência física mas também através do medo, das ameaças e da coerção a quem ousa continuar a lutar pela terra. 

No texto “Literatura como resistência ao genocídio cotidiano: os saraus realizados em Fortaleza, Ceará, 2014-2019”, o pesquisador Atílio Bergamini analisa como se dá uma das formas de resistência da juventude da periferia de Fortaleza contra o genocídio a que estão submetidas: se reunir em saraus para fazer, ler, cantar, falar, gritar poesia. É ainda neste texto que Bergamini (2012, p. 144) traz “uma das definições mais recentes” para pensarmos genocídio. Partindo de Daniel Feierstein, o pesquisador comreende que o genocídio é uma prática que destrói relações sociais de autonomia e de cooperação entre as pessoas. 

Em todas as comunidades quilombolas que conheci na Chapada e com as pessoas com as quais pude conversar, em sua maioria mulheres, os relatos se repetem. Há uma disputa pela terra e, por conta disso, essas comunidades acabam sendo ameaçadas por conta de algum grande empreendimento que chegou ao local. É isso que vimos em Iúna, a comunidade que nos transporta a todo momento para o romance Torto arado. É que foi ali que Itamar Vieira Júnior, escritor baiano, passou parte de seu tempo durante a pesquisa do doutorado e se inspirou para dar mais corpo a uma história que ele já havia começado a escrever muitos anos antes.   

Na comunidade quilombola de Iúna, os rios Santo Antônio e Utinga estão constantemente ameaçados por empreendimentos que estão chegando à região e paira um silêncio e um medo nesse local que há 5 anos atrás foi alvo de uma chacina. Foi lá que ouvi dona Jandira falar que espera justiça pelo assassinato dos dois filhos e do neto. Tal tragédia faz parte do movimento de especulação imobiliária e consequente venda de terras que tem avançado naquele território. 

Dias depois, o encontro com Catarina Silva, moradora da comunidade quilombola da Bocaina, em Piatã, que vê da janela de sua casa o avanço da mineradora Brasil Iron, me trouxe um momento de inspiração. É que Catarina traz, em suas poesias, a descrição do lugar que vive, as belezas naturais, os modos de vida de sua comunidade e ainda faz uso da palavra para denunciar os riscos e perigos que têm assolado aquele quilombo.

A Chapada Diamantina não se resume ao centro da cidade de Lençóis, região com alto custo de vida e que recebe dezenas de turistas do mundo todo. A Chapada Diamantina é preta e indígena. Não podemos nos esquecer disso. São esses modos de vida que estão sendo ameaçados pelos avanços de grandes empreendimentos. São esses os grupos que seguem tendo seus sonhos ameaçados desde a construção deste país. Mas, depois de quase vinte dias pelo centro da Bahia, não voltei para casa entristecida. Pelo contrário, ver dona Jandira, que perdeu três pessoas da mesma família, cercada por três de seus netos, crianças e adolescentes, clamar por justiça, nos enche de revolta mas também de esperança. Ouvir os moradores e as moradoras de Iúna cantar uma de suas músicas no dia marcado para relembrar a chacina dos seus e celebrar a vida, nos enche de revolta e esperança. Estar com Catarina e ouví-la recitar um de seus poemas mesmo com a voz embargada, os olhos sempre úmidos, e afirmando que não vai parar de lutar pela sua comunidade, pelos sonhos de seus filhos, me fala de construção de vidas, de projetos coletivos de futuro e me faz acreditar que, mesmo que as ameaças diversas pairem sobre aqueles territórios em forma de monstros brancos como aquela hélice que cruzou meu caminho, ainda há, como nos saraus das áreas vistas como marginalizadas em Fortaleza, muita gente que resiste e canta.


Observação: Este texto foi publicado na íntegra, no Jornal on-line Ecodebate. Disponível em: 
https://www.ecodebate.com.br/2022/10/14/luta-e-resistencia-das-comunidades-quilombolas-na-chapada-diamantina/. Acesso em 20 set. 2023.

Referência bibliográfica:

BERGAMINI, Atilio. Literatura como resistência ao genocídio cotidiano: os saraus realizados em Fortaleza, Ceará, 2014-2019. Revista Memória em Rede, Pelotas, v.13, n.24, Jan/Jul.2021 - ISSN - 2177-4129 periódicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Zimbábue, Bob Marley, a "fumaça que troveja" e a música a embalar um país



A primeira vez que ouvi falar de forma potente do Zimbábue foi quando entrei na universidade, em 2010. Com uma pressa por saber mais sobre tantas histórias que não haviam me contado, comecei a escavar as literaturas, as músicas, os filmes de diversos países do continente africano. A luta de vários daqueles países pela independência, que de nenhum modo foi uma luta de um único país, antes, demandou a união e esforços de tantos outros, prendia muito minha atenção. Me interessava e me encantava saber como a arte e a educação haviam contribuído sobremaneira com aquele ideal de liberdade, como, uma vez independentes, muitos daqueles países tiveram entre seus presidentes e ministros, pessoas que escreviam literatura: Agostinho Neto, presidiu Angola; Manuel Rui foi ministro em Angola; Léopold Séda Senghor presidiu o Senegal, Patrice Lumumba e Amílcar Cabral também escreveram poemas e presidiram países (conversa longa, pra outro post). 

O tempo passou, fui morar no Maranhão para cursar meu mestrado e ali me apaixonei por tanta coisa naquela terra, mas principalmente pelo reggae. E, mais uma vez, estava eu, escavando um tema que me fazia a cabeça. Além de cursar as disciplinas do programa de mestrado, conheci os vários clubes de reggae da cidade e pesquisei a fundo as letras das músicas, as traduções, a biografia dos cantores e das cantoras que tocavam meu coração. E foi somente naquele momento que aprendi que muitas músicas de reggae que fazem sucesso pela Ilha do Amor, como chamamos São Luís, contam histórias de luta, falam de fé, fazem referências a nomes importantes da história negra pelo mundo como Marcus Garvey e King Selassie. E foi num desses dias em que estava estudando e dançando e estudando e dançando sobre tudo isso e mais um pouco que conheci a canção que Bob Marley fez em 1979 e que se tornou o hino que embalou o Zimbábue durante e após sua luta pela independência. A música se chamava "Zimbabwe", simples assim. Pois, pronto! Já conhecia Bob, já conhecia o reggae, precisava conhecer o Zimbábue!

Anos depois, em 2019, estava eu a caminho da primeira viagem para aquele país. Dias antes de cruzar a fronteira entre Zâmbia, e Zimbábue (Zim), o país passou por um luto nacional. O cantor Oliver Mtukudzi havia falecido. Logo Oliver, que havia embalado minhas memórias e a saudade de casa durante meus vários dias em Joanesburgo, na Cidade do Cabo e na Zâmbia antes que eu seguisse para Zim. Bem, naquele momento, não havia jeito, parte da África estava triste, Zim estava triste e eu também. Mtukudzi estava morto e eu a caminho de sua terra. Não tinha como recuar. A viagem precisava seguir. 

Como a água sempre me chama, decidi começar minha andança naquele país por Victoria Falls, Vic Falls, Mosi-oa-tunya "a fumaça que troveja", em língua local, ou mesmo as Cataratas Victoria. Após chegar e me instalar, saí do hostel para dar uma volta pela cidade. Éramos eu e os macacos caminhando pra lá e pra cá e eu devo dizer que amo macacos e eles eram enormes e pareciam os donos das ruas. Me diverti. Ao chegar à entrada do Parque que abriga as cataratas vi o Brasil na foto. As Cataratas do Iguaçu  estavam bem ali no mapa. Sim, é que as nossas cataratas são as maiores do mundo em altura, Mosi-oa-tunya  está em segundo lugar neste critério, mas em primeiro no mundo em extensão, chegando a 1708 metros. Entrei no Parque e fui seguindo as dezenas de placas que nos indicam um possível ponto final. Como uma mulher que viaja sozinha, tive que aprender a me virar com a câmera do celular no temporizador para fazer registros meus e daquele lindo lugar. 

Depois de dois dias em Vic Falls, decidi seguir para Harare, a capital do Zimbábue. Foram cerca de 12 horas por via terrestre, de um ponto a outro. Naquele trajeto, que se iniciou às 21h, me sentei na janela do ônibus e logo me aconcheguei pra tentar dormir toda noite e só acordar no outro dia. Ah, mas o que seria da vida, e das viagens, sem as surpresas?! O ônibus tocava músicas zimbabueanas a noite toda em um volume ensurdecedor. Era Thomas Mapfumo, Ammara Brown, o próprio Oliver, Eram músicas que nos faziam querer dançar a valer. Aquilo me divertia. Que privilégio eu tive, afinal, era como se, ao invés de estar viajando em descanso, eu tivesse escolhido passar a noite numa boate do Zimbábue. E o melhor ainda estava por vir. A cada uma hora de viagem, mais ou menos, o motorista baixava completamente o som da música, parava o ônibus e alguém fazia uma oração para que chegássemos em paz ao nosso destino. Eu, como boa evangélica de berço, fechava os olhos e engrossava aquele coro de vozes, mas em português. Não poderia perturbar tanto os ouvidos de Deus com essa minha língua enrolada. E chegamos finalmente à capital, Harare, às 09h da manhã, sãos e salvos. Não sei se a música ou a oração nos manteve vivos. Só sei que, por via das dúvidas, cantar, dançar e orar são sempre rituais que me mantêm firme diante da vida e que bom saber que naquele país parece que eles concordam comigo.
 




Mosi-oa-tunya (eu só olhava pra essa imagem e agradecia a Deus por estar viva e por ouvir aquele trovejar de tão perto)






Acima: Bob Marley e Oliver Mtukudzi  

Referência: Para saber mais sobre Mosi-oa-tunya. Disponível em: http://www.afreaka.com.br/as-cataratas-de-mosi-oa-tunya-ou-a-famosa-victoria-falls/. Acesso em 02 set. 2023.