sexta-feira, 28 de julho de 2023

Do amor e seus riscos: leitura de "Mal dito coração", de Bruna Sonast

 



Quantas foram as vezes que tecemos conexões entre o amor e o coração? Essa ideia de que o ser amado e o amor estão abrigados nesse órgão guardado sob nosso peito é tão antiga quanto nossa existência. É ao coração que nos referimos quando estamos felizes por sermos amadas, mas é também ele que citamos quando as coisas não vão bem. Ah, esse maldito coração! É a este coração, tantas vezes incompreendido, que o livro Mal dito coração, de Bruna Sonast vai fazer referência.

Com texto de apresentação de Laís Eutália, poeta cearense que já nos alerta antes de iniciarmos as leituras dos poemas de Bruna que “amar é correr o risco”, Mal dito coração nos guia por uma espécie de trilha em que acompanhamos o nascimento da paixão, o desejo que cresce, o amor, e, depois, sua transformação em abandono, em separação, em término. Mas não se iluda, leitora, todo final pode ser um recomeço. E, assim, acontece no livro, tudo recomeça.

Bruna Sonast é natural do Ceará, produtora cultural com graduação em Letras e mestrado em Linguística Aplicada, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Além disso, realiza edição e revisão de livros literários e integra a baRRósas, uma coletiva feita por e para mulheres e artistas independentes, que realiza saraus e eventos literários em diversas áreas de Fortaleza, fora dos bairros considerados centrais. Publicou Vestígios (2020), por via independente, com nova impressão em 2021, organizou e participou com poemas em baRRósas: memória e poesia, publicado em 2021 pela editora Mirada. Também organizou Escritas do fim do mundo (2022), de forma independente.

O livro de Bruna Sonast nos convida a reflexões diversas desde o título, pass(e)ando pelo seu interior e nos possibilita que sejamos nós também construtoras desse fazer poético junto com ela. Ao marcar a palavra mal dito no título de forma separada  a poeta nos provoca a pensar nas possibilidades de leitura desta maldição que tanto relacionamos ao coração, logo, por vezes, ao amor. E há palavras mal ditas que proferimos no momento de dor por uma separação, uma perda amorosa, uma desilusão. Mas e quando amamos e estamos sendo amadas, será que sabemos falar bem deste coração, ou as palavras ainda não são bem ditas?

Como, por vezes, o amor está relacionado à paixão, é o poema “passional” que traremos para começar a ilustrar nossa conversa:

 

desejar

como quem se rende

e explode o país

(Sonast, 2022, p. 14).

 

Em poucas linhas, Bruna resume o que acontece conosco ao nos apaixonarmos: inicialmente, uma redenção, uma entrega, e, em seguida, a paixão é representada em toda intensidade na escolha da palavra “explode”. Ou seja, se antes há uma fraqueza deste corpo frente a tudo que chega de novo, depois, fortalecido, tudo é tão avassalador a ponto de nos dar coragem de explodir algo e, neste poema, um país. Aqui, podemos pensar em um país como uma metáfora para a ideia de nação. Afinal, é o país e tudo que está guardado sob esse manto da homogeneidade que, por vezes, nos violenta: o machismo, o patriarcado, o preconceito, uma única identidade. Assim, explodir um país soa como destruir todas as nossas certezas para começar algo novo.

Com ilustrações de Jéssica Lourença, mais uma artista cearense, Mal dito coração nos convida a preencher espaços em brancos deixados ali propositalmente pela autora. Como quem sabe que poesia é também silêncio, Bruna Sonast deixou páginas vazias ao longo do seu livro com convites para que a gente escreva ali. Desse modo, podemos nós, as leitoras, escrever nossos próprios poemas ou pensamentos que nos vêm ao longo da leitura do livro.

Ainda sob o efeito da paixão, o poema “antropofágica” sintetiza o desejo de ter o ser amado:

 

teu gosto

des co brin do

cada canto

da minha boca

(Sonast, 2022, p. 34)

 

Interessante aqui a inversão que é colocada em poucos versos. Não é mais a boca a descobrir gostos, mas sim o contrário, o gosto dessa outra pessoa que vem inaugurar os lábios do eu-lírico.

Em seguida, o amor se instala bem devagarinho e faz morada, mas quem está amando está sempre à espreita:

 

a risco

o bicho feio

que é o amor

cravou os dentes no meu estômago

(Sonast, 2022, p. 54)

 

O título do poema, “a risco” pode ser lido como arisco, ou seja, há desconfiança em relação à alguma situação, mas também pode ser interpretado como o risco diante do que se instalou dentro de mim. E, nesse caso, para além do coração, tenho agora um incômodo no estômago, outro órgão do corpo frequentemente citado quando falamos de nossas emoções. Assim, já reféns do amor, o risco da perda, de quebrar a cara, de nos decepcionarmos, pode nos deixar ariscas e inclusive chamar o amor como também chama a poeta “de bicho feio”. Ah, o amor sendo mal dito mais uma vez.

E depois de tudo isso, para onde vamos agora? Para a desilusão do amor. Para o que fica depois de um fim.

 

do que resta

 

o amor acabou

ficou só a vontade

estraçalhando por dentro

o osso

o oco

 

de tudo teu

que partiu

e permanece

 

minha obsessão

(Sonast, 2022, p. 66)

 

A sensação de perda, que faz com que o amor seja mal dito, é que está acima destacada. Após tantos momentos bons, do frio e das borboletas no estômago, do coração tão vermelho de amor, chega a desilusão. O vazio. No entanto, o poema afirma que outro sentimento “permanece”, a obsessão pelo que se amou. O outro se foi, partiu, mas esse desejo de reviver tudo fica, junto com a vontade de ter o ser amado.

No entanto, o sofrimento por amor não desfaz na poeta a vontade de amar de novo. Ao contrário, há que se continuar a tentar mais uma, mais uma, mais uma vez.

seguir o curso incerto

de desejar

tudo

outra vez

(SONAST, 2022, p.88).

 

O poema sem título retoma o desejo dos poemas iniciais do livro de Bruna Sonast e reafirma que a busca contínua por amor nos faz sermos ousadas e destemidas, fazer tudo “outra vez”.

Mal dito coração é um livro que poderia ser lido como um romance em prosa, dividido em quatro atos: o começo da paixão, o amor instalado, a decepção amorosa e, por fim, o recomeço. No entanto, para além de um ser amado, Bruna Sonast nos provoca a pensar em tudo que guardamos sob o escudo do coração para além do amor romântico entre um homem e uma mulher. Assim, a leitura dos poemas nos faz pensar em sonhos, em projetos que desejamos, nos empenhamos, conseguimos e, por vezes, nos decepcionamos; nos faz pensar no trabalho que tanto queríamos e não é exatamente como imaginávamos; nos lembra uma amizade desfeita; um curso, uma viagem ou algo em que investi tanto tempo e energia e, no fim, não foi como eu esperava, e meu coração ficou igualmente partido. Ou seja, no livro há muito sobre o amor entre duas pessoas, mas há também várias outras camadas de amor e de desejo que nos fazem, por vezes, mal dizer este coração bobo que, teimoso, recomeça sempre que pode.

SONAST, Bruna. Mal dito coração. Recife: Selo Mirada, 2022. 104 páginas. Revisão de Gílian Brito; coordenação editorial de Taciana Oliveira; diagramação de Rebeka Samyra. 

 



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