Quantas foram as vezes
que tecemos conexões entre o amor e o coração? Essa ideia de que o ser amado e
o amor estão abrigados nesse órgão guardado sob nosso peito é tão antiga quanto
nossa existência. É ao coração que nos referimos quando estamos felizes por
sermos amadas, mas é também ele que citamos quando as coisas não vão bem. Ah,
esse maldito coração! É a este coração, tantas vezes incompreendido, que o
livro Mal dito coração, de Bruna
Sonast vai fazer referência.
Com texto de apresentação
de Laís Eutália, poeta cearense que já nos alerta antes de iniciarmos as
leituras dos poemas de Bruna que “amar é correr o risco”, Mal dito coração nos guia por uma espécie de trilha em que
acompanhamos o nascimento da paixão, o desejo que cresce, o amor, e, depois, sua
transformação em abandono, em separação, em término. Mas não se iluda, leitora,
todo final pode ser um recomeço. E, assim, acontece no livro, tudo recomeça.
Bruna Sonast é natural do
Ceará, produtora cultural com graduação em Letras e mestrado em Linguística
Aplicada, ambos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Além disso, realiza
edição e revisão de livros literários e integra a baRRósas, uma coletiva feita
por e para mulheres e artistas independentes, que realiza saraus e eventos
literários em diversas áreas de Fortaleza, fora dos bairros considerados
centrais. Publicou Vestígios (2020),
por via independente, com nova impressão em 2021, organizou e participou com
poemas em baRRósas: memória e poesia,
publicado em 2021 pela editora Mirada. Também organizou Escritas do fim do mundo (2022), de forma independente.
O livro de Bruna Sonast
nos convida a reflexões diversas desde o título, pass(e)ando pelo seu interior
e nos possibilita que sejamos nós também construtoras desse fazer poético junto
com ela. Ao marcar a palavra mal dito
no título de forma separada a poeta nos
provoca a pensar nas possibilidades de leitura desta maldição que tanto
relacionamos ao coração, logo, por vezes, ao amor. E há palavras mal ditas que
proferimos no momento de dor por uma separação, uma perda amorosa, uma
desilusão. Mas e quando amamos e estamos sendo amadas, será que sabemos falar
bem deste coração, ou as palavras ainda não são bem ditas?
Como, por vezes, o amor
está relacionado à paixão, é o poema “passional” que traremos para começar a
ilustrar nossa conversa:
desejar
como quem se rende
e explode o país
(Sonast, 2022, p. 14).
Em poucas linhas, Bruna
resume o que acontece conosco ao nos apaixonarmos: inicialmente, uma redenção,
uma entrega, e, em seguida, a paixão é representada em toda intensidade na
escolha da palavra “explode”. Ou seja, se antes há uma fraqueza deste corpo
frente a tudo que chega de novo, depois, fortalecido, tudo é tão avassalador a
ponto de nos dar coragem de explodir algo e, neste poema, um país. Aqui,
podemos pensar em um país como uma metáfora para a ideia de nação. Afinal, é o
país e tudo que está guardado sob esse manto da homogeneidade que, por vezes,
nos violenta: o machismo, o patriarcado, o preconceito, uma única identidade.
Assim, explodir um país soa como destruir todas as nossas certezas para começar
algo novo.
Com ilustrações de
Jéssica Lourença, mais uma artista cearense, Mal dito coração nos convida a preencher espaços em brancos
deixados ali propositalmente pela autora. Como quem sabe que poesia é também
silêncio, Bruna Sonast deixou páginas vazias ao longo do seu livro com convites
para que a gente escreva ali. Desse modo, podemos nós, as leitoras, escrever
nossos próprios poemas ou pensamentos que nos vêm ao longo da leitura do livro.
Ainda sob o efeito da
paixão, o poema “antropofágica” sintetiza o desejo de ter o ser amado:
teu gosto
des co brin do
cada canto
da minha boca
(Sonast, 2022, p. 34)
Interessante aqui a
inversão que é colocada em poucos versos. Não é mais a boca a descobrir gostos,
mas sim o contrário, o gosto dessa outra pessoa que vem inaugurar os lábios do
eu-lírico.
Em seguida, o amor se
instala bem devagarinho e faz morada, mas quem está amando está sempre à
espreita:
a risco
o bicho feio
que é o amor
cravou os dentes no meu estômago
(Sonast, 2022, p. 54)
O título do poema, “a
risco” pode ser lido como arisco, ou seja, há desconfiança em relação à alguma
situação, mas também pode ser interpretado como o risco diante do que se
instalou dentro de mim. E, nesse caso, para além do coração, tenho agora um
incômodo no estômago, outro órgão do corpo frequentemente citado quando falamos
de nossas emoções. Assim, já reféns do amor, o risco da perda, de quebrar a
cara, de nos decepcionarmos, pode nos deixar ariscas e inclusive chamar o amor
como também chama a poeta “de bicho feio”. Ah, o amor sendo mal dito mais uma
vez.
E depois de tudo isso,
para onde vamos agora? Para a desilusão do amor. Para o que fica depois de um
fim.
do que resta
o amor acabou
ficou só a vontade
estraçalhando por dentro
o osso
o oco
de tudo teu
que partiu
e permanece
minha obsessão
(Sonast, 2022, p. 66)
A sensação de perda, que
faz com que o amor seja mal dito, é que está acima destacada. Após tantos
momentos bons, do frio e das borboletas no estômago, do coração tão vermelho de
amor, chega a desilusão. O vazio. No entanto, o poema afirma que outro sentimento
“permanece”, a obsessão pelo que se amou. O outro se foi, partiu, mas esse
desejo de reviver tudo fica, junto com a vontade de ter o ser amado.
No entanto, o sofrimento
por amor não desfaz na poeta a vontade de amar de novo. Ao contrário, há que se
continuar a tentar mais uma, mais uma, mais uma vez.
seguir o curso incerto
de desejar
tudo
outra vez
(SONAST, 2022, p.88).
O poema sem título retoma
o desejo dos poemas iniciais do livro de Bruna Sonast e reafirma que a busca
contínua por amor nos faz sermos ousadas e destemidas, fazer tudo “outra vez”.
Mal dito coração é um livro que poderia ser lido como um romance em prosa, dividido em quatro atos: o começo da paixão, o amor instalado, a decepção amorosa e, por fim, o recomeço. No entanto, para além de um ser amado, Bruna Sonast nos provoca a pensar em tudo que guardamos sob o escudo do coração para além do amor romântico entre um homem e uma mulher. Assim, a leitura dos poemas nos faz pensar em sonhos, em projetos que desejamos, nos empenhamos, conseguimos e, por vezes, nos decepcionamos; nos faz pensar no trabalho que tanto queríamos e não é exatamente como imaginávamos; nos lembra uma amizade desfeita; um curso, uma viagem ou algo em que investi tanto tempo e energia e, no fim, não foi como eu esperava, e meu coração ficou igualmente partido. Ou seja, no livro há muito sobre o amor entre duas pessoas, mas há também várias outras camadas de amor e de desejo que nos fazem, por vezes, mal dizer este coração bobo que, teimoso, recomeça sempre que pode.
SONAST, Bruna. Mal dito coração. Recife: Selo Mirada, 2022. 104 páginas. Revisão de Gílian Brito; coordenação editorial de Taciana Oliveira; diagramação de Rebeka Samyra.
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