quarta-feira, 2 de agosto de 2023

O son(h)o a despertar. Leitura de "Sob o sono dos séculos", de Márcio Sguassábia



O que tem sido guardado sob o sono dos séculos das nossas histórias pessoais, mas também coletivas, histórias que reverberam e constroem um imaginário sobre uma vida, sobre um país? Talvez a resposta de algumas de nós encontre eco nos poemas que compõem o livro de Márcio Ketner Sguassábia, Sob o sono dos séculos

Nascido em Pirassununga, interior de São Paulo, Márcio, que também é estudante de medicina na Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, em Uberaba, nos presenteia com imagens escritas em forma de livro. E, junto com ele, inauguramos um mundo de palavras ressignificadas. 

Com um olhar atento sobre imagens que nos moldam os dias, o poeta, leitor atento, traz a voz dos mais velhos para construir com ele essa ciranda de poemas que vêm e vão, que falam de passado, mas também, e por isso mesmo, de presente, de futuro. Apesar de o título nos indicar algo referente ao que passou e está submerso ou escondido, o poeta, como um vate, ou um profeta, nos convida a desvendar o novo. Como afirma Anna Júlia Perondi, na orelha do livro “O sono atrasado, que urge mudança, movimento”.

Dividido em duas partes, “Matriz” e “Motriz”, o livro que Márcio nos apresenta lança luz sobre histórias invisibilizadas, soterradas sob esse sono. E, aqui, o uso da palavra sono nos remete a algo forçado, um sono intencional em que algumas palavras, histórias e corpos precisa(ra)m dormir para que outros, acordados, seguissem ditando regras.

No entanto, imaginar que outros corpos dormiram, calados e silenciados, pode ser uma leitura superficial e desatenta. Afinal, estamos falando de pessoas que nunca puderam ousar dormir um sono tranquilo e, ao contrário, seguiram forjando son(h)os, resistências e modos de vida tantos. É isso que Sguassábia nos convida a escavar com ele, seja em suas memórias de infância, mas também em histórias de pessoas que formaram nosso país.

Penetrando sob a pele das palavras que intitulam as duas partes do livro de “Matriz” e “Motriz”, temos, na primeira, poemas em que Sguassábia, afoito por saber mais de seu passado, rememora sua infância, a sala proibida da casa dos avós, sua bisa, a morte da primeira cachorrinha, o palito do algodão doce que vira instrumento para a criança para reger uma orquestra, o rio, a rua, um sítio e tudo se torna matéria para seus poemas. Sabendo que uma matriz é o lugar onde algo ou alguém é gerado ou criado, e também a região pélvica das fêmeas onde o embrião se desenvolve, Sguassábia nos mostra, de modo generoso, as inspirações que o ajudaram a forjar sua própria matriz. Interessante observar que a poesia é a origem primeira, como vimos no poema que abre o livro:


poética


observar

absorver (SGUASSÁBIA, 2022, p.13).


Esses dois versos, que poderiam estar na seção intitulada “Motriz”, pois nos lembram movimentos, é também um mapa complexo que pode nos levar a lugares inimagináveis quando pensamos na escrita poética. E, aqui, Márcio nos traz uma espécie de roteiro para escrever literatura. Poderíamos, inclusive, usar as duas palavras no imperativo: observe! absorva! Essas ações podem reconstruir mundos através da linguagem. Se, em um primeiro momento, precisamos observar, e aqui, para além dos olhos, mas também tocar, cheirar, ouvir, depois, é preciso um mergulho, um sentir, para que poemas já entranhados na pele, os poemas nasçam. É preciso absorver.

Ainda pensando em uma matriz, desta vez, ancestral, que já não está mais nesse plano terreno, mas que, de algum modo, formou essa memória infantil, o poeta diz: 


presença


enterrado o corpo

arrumado o quarto

aberta a cortina

doadas as roupas

guardadas as fotos

ela, ainda assim, permanecia 


feito esse vento

que tantas vezes espalhou 

as folhas que varria (SGUASSÁBIA, 2022, p. 30).


Sem saber se ele se refere à avó ou à bisavó, ainda assim, o olhar-menino, agora um homem, sabe que uma passagem do corpo se faz, mas que há outras formas de termos alguém que amamos por perto. E, aqui, já é um olhar maduro diante da vida.

No entanto, para além da dor da perda vivenciada por uma criança, há momentos em que nos fazemos perguntas que ficam sem resposta até que cresçamos. É isso que está colocado no poema “infância”:


quando minha tia freira dizia ser a esposa de cristo,

eu me perguntava como era possível viver tanto 

(SGUASSÁBIA, 2022, p. 18).


Mais uma vez, o olhar do menino curioso, que não sabe ao certo a idade da tia freira ou a idade de um cristo humanizado, marcado com letra minúscula. Essas dúvidas o inquietam. Mas, não é o que acontece na segunda parte do livro “Motriz”. Ali, um poeta adulto tem certezas e sabe que a vida é dura. As nuvens de algodão, o algodão doce, o rio perto de casa, cedem lugar às agruras que rondam nosso país.

Motriz nos traz um movimento de Márcio Sguassábia por entre diferentes dores que estão colocadas na ordem do dia do Brasil: o genocídio dos meninos negros, o trabalho escravo contemporâneo, a loucura institucionalizada, entre outros temas. Vejamos o poema a seguir: 


dia das bruxas


e o menino

só ganhou

balas

perdidas (SGUASSÁBIA, 2022, p. 39).


Apesar de Márcio trazer uma brincadeira de infância, não tão comum no Brasil como nos moldes dos Estados Unidos, o ir de casa em casa, bater à porta e receber doces, por aqui, o dia das bruxas, do terror, é a violência que assola a vida de meninos jovens negros e isso acontece não só em outubro, mas todos os dias. Ou seja, a bala perdida sempre encontra um determinado corpo. Como diz o cantor Emicida em seus versos “oitenta tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo”.

Outra denúncia que aparece nos poemas de “Motriz” é o trabalho escravo contemporâneo, como descrito no poema “paisagem”:


no verde

oceano

da cana

uma 

carne

barata

boia 

fria (SGUASSÁBIA, 2022, p. 41).


O poema traz para o debate um tema que ainda nos mantém presos ao passado, o trabalho do bóia-fria, um trabalhador que atua no campo, mas que, muitas vezes, é submetido a relações de trabalho análogas à escravidão. Nas imagens do poema, um corpo humano, a carne barata, inter-rompe o verde lindo da paisagem de cana-de-açúcar [sempre a cana, desde a escravidão], lugar que, em geral, abriga esses trabalhadores.

Por fim, o tema da loucura tem uma presença forte ao longo desta segunda parte do livro. Os loucos desfilam, desta vez, não sob, mas sobre as páginas e têm eles e elas, suas histórias contadas por outras perspectivas, têm seus nomes citados. Como é o caso da personagem que dá nome ao poema “neuza”:


na permanência

do laço,

arrancada

a filha sua,

andarilha

pela rua

- boneca

no braço (SGUASSÁBIA, 2022, p. 45).


Muitas vezes, pelas ruas, nos deparamos com pessoas vistas como “loucas”. Em cidades pequenas, inclusive, elas se tornam personagens em nosso dia a dia, mas quase nunca sabemos o que desencadeou tal loucura. Aliás, sempre importante pensar a loucura como forjada por uma sociedade adoecida. No caso de Neuza, a loucura vem com a perda da filha, levada de seus braços à força. É essa memória que ainda a faz perambular pelas ruas como se carregasse sua bebê. Uma personagem que poderia estar em qualquer esquina de nossa vida e que também merece ter sua história aqui contada. 

Com texto de contracapa de Marcelino Freire, que avisa, Márcio Sguassábia "chega, como quem não quer nada e nos desperta do sono profundo", Sob o sono dos séculos é um um convite para sermos nós também despertadoras de sonhos e sonhos antigos e escritoras ou mesmo contadoras de novas histórias e memórias e sonhos. Que possamos descobrir novas matrizes, mobilizar nossa força-motriz e nos manter acordadas e atentas, assim como as vozes que Márcio Sguassábia desperta em seu livro. 

SGUASSÁBIA, Márcio Ketner. Sob o sono dos séculos. São Paulo: Laranja original, 2023.




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