sexta-feira, 24 de maio de 2024

Sangare Okapi e a reinauguração do (a)mar

 




OKAPI, Sangare. Os poros da concha. Maputo: Cavalo do mar, 2018.

A minha primeira travessia pelo Atlântico-Índico, fazendo o percurso Brasil-Moçambique deu-se através da literatura. Conhecer textos de africanos (as) que escreviam em português me fez sentir que estava, de algum modo, mais próxima da África. Por isso, no último ano, finalmente em Maputo, decidi comprar alguns livros de escritores moçambicanos para trazer para o Brasil. Deparei-me, inicialmente, com Os poros da concha, de Sangare Okapi e lembrei-me de Ricardo Riso, brasileiro, especialista em Literatura africanas de língua portuguesa, e de seus textos sobre diversos escritores, entre eles, Okapi. Compra realizada, iniciei a leitura.

Uma mistura de surpresa e contentamento me acompanharam durante minha passagem por Moz e pelos quarenta poemas de Sangare Okapi que embalaram minha viagem. A poesia moçambicana que, por um determinado tempo serviu para cantar a revolução, tendo em Noémia de Souza uma de suas principais vozes, hoje canta outras revoluções e temas como o lugar da mulher na sociedade moçambicana, as identidades do povo de Moçambique, a escrita e a resistência.

É o corpo, preenchido por água em suas diversas formas, seiva, saliva e leite, a matéria-prima para a construção dos poemas de Sangari Okapi. No entanto, podemos falar em corpos no plural, o do poeta e o de sua amada, a quem o livro é dedicado. Em Os poros da concha, o escritor moçambicano, autor de Inventário das angústias ou Apoteose do nada, Mesmos barcos ou poemas da revisitação do corpo, Era uma vez... e Mafonematográfico também círculo abstrato reinaugura um idioma marítimo, fazendo com que o (a) leitor (a) mais atento (a) navegue por rotas diversas em busca de outras línguas, entre elas o ronga.

Para um (a) leitor (a) brasileiro (a), o processo de travessia além-mar também se dá pelo estranhamento de algumas palavras que, apesar de não serem parte de nosso cotidiano, transformam-se em elemento constituinte da poesia de Okapi, como o uso do ronga, uma das línguas faladas em Moçambique:


coerência agramatical ou ronga a língua que soluço

adjectivos que em teu corpo incauto acrescento

repito uva a vulva se espontânea mão a gruta alcança

ou óvulo ou trompa ou útero o que encubas

lugar que meu animal quero crescer até tarde (OKAPI, 2018, p.20)


Mas no caso de Okapi, todo detalhe pode contribuir para a compreensão do texto que temos diante de nós. A capa do livro, em tom azul vibrante, e o título, nos remetem a vivências marítimas: o azul do mar e a concha que, por vezes, guarda a Pérola valiosa, neste caso, Olga, a musa que é a inspiração do poeta sinalizam o diálogo que encontraremos nas páginas que se seguem: o infinito e úmido do mar, e a navegação por esse corpo-concha-mulher. E é desse mar-corpo amado que emergem as metáforas construídas por Sangare Okapi.


tua

voz

nua

foz

(OKAPI, 2018, p.33)


Ao longo das pouco mais de 50 páginas do livro, o poeta dedica-se a reinventar um

idioma do (a)mar. A foz, nesse caso, fluxo de água que deságua noutro, nos remete ao

encontro de dois corpos e é esse a imagem que temos desenhada por todo o livro.


Indelével é a concentração da matéria estelar

E não sei que paralaxes de corpos o anunciam

Oh elocução do vento desvairando a erva eriçada

Com os poros abertos convocado para a cerimónia

quero os amuletos e os seus nsopes na sua voz rouca

da língua incitando a saliva onde desaguar o beijo

(OKAPI, 2018, p.21)


A poesia de Okapi revoluciona a linguagem e desenha para o (a) leitor (a) um

emaranhado de cenas sensuais. No entanto, é a concha, o molusco que guarda a pérola,

um caroço valioso, que temos retratado no poema abaixo:


amo-te inteiros os caroços do corpo

cândidas montanhas arruam no peito

dissimulando o pó e o néctar no leito

reinventa a planície toda e seu vento

com a vagem da terra aquém pranto

(OKAPI, 2018, p.43)

No livro de Ernst Fisher, A necessidade da arte, temos uma frase de Jean Cocteau: “A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse para quê...”. A provocação-ironia de Cocteau parece ser um possível ponto de partida para adentrarmos os textos de Sangare Okapi que sabe de forma certeira para quê escreve a sua poesia, ao erguer uma linguagem em cada um de seus poemas.


arborescente corpo na areia tatua folhas no ar

molde de embondeiro raiz vigilante para o sol


âncora e cinzel e agulha desenterrados do mar

como no útero das plantas o pólen do girassol

vagamente entre os lábios viris das tuas coxas


(OKAPI, 2018, p.16)


Como um servo das palavras, Okapi nos convida a navegar nesses oceanos-corpos e nos umedece a língua e a imaginação ao descrever tantos encontros, entre mar, palavras, gentes e desejos, com metáforas grávidas de significados que são entregues como uma concha de presente ao (à) leitor (a), para que forme, ele (a) também, suas pérolas.


Fonte da imagem: Google

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