domingo, 7 de julho de 2024

“Nakhodha e a Sereia: quando o mar é o mundo”


"Nakhodha e a Sereia" (foto de Bento, 2024)


Estamos na Ilha de Moçambique, em Moçambique, num galpão escuro, uma antiga alfândega, mercado de escravizados. Era daqui que partiam corpos africanos agora transformados em peças, mercadorias, para diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. Mas é também aqui, neste espaço, que está organizada a instalação “Nakhodha e a Sereia”, da artista moçambicana Yara Costa. Se num primeiro momento, ao adentrar o local, a imensidão e a escuridão do galpão nos assustam, em poucos segundos, os barcos espalhados pelo salão, com luzes coloridas fazem nossos olhos brilharem como de uma criança prestes a desvendar mistérios. A instalação pode ser lida como uma homenagem à cultura marítima, em especial, a cultura swahili – tão presente no norte de Moçambique, onde está localizada a Ilha –, mas também à cultura de povos que vivem do (e no) mar em qualquer lugar do mundo.  

A instalação “Nakhodha e a Sereia” aciona nossos diversos sentidos. Inicialmente, somos convidadas a subir as escadas que dão acesso aos barcos, e nos sentarmos. Depois, devidamente acomodadas acima do chão e, com fones de ouvido, Bento, o guia-monitor, vai colocando os diversos sons que iremos ouvir, não sem antes explicar cada um deles.

E a magia começa. Os áudios captados em formato 360 graus nos causam a sensação de estarmos ao vivo no exato momento de captação de cada um deles. São canções entoadas em macua durante a feitura da embarcação; sons do barco indo ao mar; vozes que se entrelaçam e que, para uma falante de língua portuguesa como eu, apesar de não compreender nada, ainda me causam alguma emoção.

Após esse mesmo processo de sentar e ouvir um som em cada uma das embarcações menores, a surpresa maior da exposição encontra-se no último ato onde, agora, somos nós as nakhodhas, as capitãs do dhow, uma embarcação swahili imensa, que está alocada no centro do salão. Subimos ao dhow e ali, através de óculos de realidade virtual, somos convidadas a olhar o passado, em que corpos escravizados aparecem na tela, e imaginar um futuro em que o mar está subindo cada dia mais devido ao aquecimento global.

A idealizadora da instalação, Yara Costa, é uma artista moçambicana que viveu em diversos lugares do mundo, mas que hoje vive na Ilha de Moçambique. Como diria Saramago em seu O conto da ilha de desconhecida: “É preciso sair da ilha para ver a ilha.” Yara sai, roda o mundo e volta com o olhar ainda mais focado naquilo que a co-move todos os dias, o mar. Afinal, estar na Ilha é também permitir-se mirar outros sítios de modo seguro. Formada em Comunicação Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Yara Costa é uma narradora de histórias que já realizou diversos trabalhos como os filmes “Entre Eu e Deus”, “Depois da água”, e recentemente ganhou o "Prêmio de mentoria para respostas culturais e artísticas à crise ambiental", que reúne 12 artistas de todo o mundo.

Em “Nakhodha e a Sereia”, o olhar da cineasta aparece demais. A artista vai nos contando uma história que interliga presente, passado e futuro. A construção do dhow hoje, a escravidão e a Ilha de Moçambique como lugar de onde partiam escravizados, a exemplo de um dos barcos que navega a partir da Ilha, em 1794, e o futuro não tão distante, em 2030. O que será da humanidade com o aumento do nível do mar? E as populações que vivem do mar já têm percebido as mudanças? Em que isso impacta esses saberes tradicionais? Poderíamos estar falando de vários povos do Brasil e também do mundo, que têm no mar seu sustento e suas formas de vida.

Como vimos na instalação, esse mar imenso que, apesar de revolto e, muitas vezes, mar-tenebroso durante a escravidão, foi também mar-refúgio durante a guerra civil, em que muitas pessoas se refugiavam nos barcos ao mar como espaço de fuga. É esse mesmo mar que possibilita o sustento de tantas famílias que vivem dos alimentos que ali recolhem.

No final da instalação, a imagem das mulheres preenche a sala. Elas desfilam nas paredes, catando mariscos na praia, com suas roupas e lenços coloridos, algumas com filhos às costas, enquanto brincam, cantam e dançam. O trabalho no mar como o lugar da alegria. E, nós, as capitãs do dhow, com visão privilegiada sobre aquele imenso espaço azul, ficamos ali, sentadas, quase hipnotizadas por aqueles cantos, como se as mulheres sereias fossem. Admiradas diante do deslumbre da vida, nos esquecemos por um instante que estamos num antigo mercado de escravizados, numa instalação, que nosso futuro está ameaçado. A sensação é de que estamos em pleno mar, os pés acima do chão e a certeza de que o mar é o mundo.


Yara Costa (Google imagens)

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