segunda-feira, 20 de maio de 2024

"Princípio", de Álvaro Fausto Taruma, ou o que se inicia em Abril




Fonte da imagem: Google imagens



TARUMA, Álvaro Fausto. Matéria para um grito. Maputo: Cavalo do mar edições, 2018.


PRINCÍPIO

Este poema principia em Abril com o pássaro de azul rasan-/do a terra, um pouco de ternura pelos lábios feito vinho,/ feito mar, feito largas varandas matutinas com/ os braços ao abrigo de outros braços, uma inesperada canção/ de embalar. Fosse a infância esta árvore onde, infatigáveis/ peregrinos estendendo o peito à chuva e ao pó das estra-/das, esperávamos, enfim, que nos tocasse o deus da alegria/ prometida. Ainda que fôssemos Abraão, ou Jacó ou Isaac, e/ até Cristo em suas mãos perpassadas; fosse Ester ou Ruth ou/ Maria Madalena; ainda que fôssemos todas as tribos desde/ as maçãs crepusculares, os sinais, os trovões, a linguagem,/ ou fôssemos crianças que brincávamos inocentemente com o/ fogo. O poema trabalha o seu próprio corpo, o seu próprio/ barro de palavras, o chão, o pão, o coração, inapagáveis/ cinzas de vulcão ante o sopro da terra por sobre a costela de/ Adão. Untam em mentiras Abril, certo dia, com os corvos/ de negro flagelando o solo; estado de sítio made in América e,/ no entanto, a guerra interminável: guerra de palavras, guerra/ civil, guerra de sexos, “Allahu akbar”, o poema avançando de/ oceano em oceano: velho, cansado, relicário, porta-aviões de/ sílabas impossíveis. 



No poema em prosa “Princípio”, presente no livro Matéria para um grito, publicado em 2018 pela Cavalo do mar edições, o poeta moçambicano Álvaro Fausto Taruma, nascido em Inhaca, em 1988, mostra que tudo há de ser matéria para um grito, incluindo a memória coletiva de uma nação. E por grito, compreendemos também, canção, manifesto, poesia. O eu-lírico traz um Abril em letra maiúscula, um mês muito simbólico tanto para Portugal quanto para a história das ex-colônias portuguesas além-mar, afinal, foi no 25 de abril de 1974 que a Revolução dos Cravos aconteceu. Um grito que eclodiu muito antes como murmúrio e luta armadas nas colônias, mas que tem seu apogeu e “princípio”, como diz o título do poema, neste simbólico Abril. No entanto, apesar de o poema trazer a imagem de um pássaro, símbolo maior de liberdade como a abrir sobre nós suas asas de novos ventos, afinal, ele voa no céu sem limites de distâncias ou controle, é um texto em que o eu-lírico está melancólico diante da espera de promessas que nunca se cumpriram. O deus da alegria, um deus com letra minúscula, logo um deus humanizado, retirado do lugar de santidade, nunca chegou a realizar sonhos tão esperados por aqueles que gritaram um Abril como liberdade. No entanto, apesar de um deus em minúsculas, o poeta menciona personagens bíblicos que foram fieis a Deus e tiveram sua recompensa. Basta nos lembrarmos de Abraão, pai de uma geração, Jacó que, insistente ao lutar com um anjo, não o deixa ir até que seja abençoado e tem o nome modificado para Israel (Gênesis 32:18), Isaac, Ruth, Esther, todos obedientes, com fé têm suas vidas modificadas. Ainda que fôssemos cada um desses “herois da fé”, a vida continuou a mesma. E o eu-lírico insere em seu texto uma reflexão sobre o fazer poético ao afirmar que cabe ao poema, e aqui digo, às palavras, re-fazer, des-fazer, re-construir seu próprio corpo. Como diz Craveirinha em sua “Cantiga em três tempos”: “A dificuldade/da verdadeira poesia não são as ideias/São as palavras.” Abril segue após 1974 recheado de mentiras de um amanhã vindouro. E agora há um diálogo com guerras que acontecem em outros lugares do mundo: por exemplo, a referência a um estado de sítio, uma guerra declarada, mas aos moldes dos Estados Unidos da América. A guerra de palavras, de sexo, civil. O poeta descreve as incontáveis guerras que ocupam o cotidiano: na guerra de palavras, podemos pensar os discursos de ódio, os discursos que iniciam guerras, as guerras civis inclusive; as guerras dos sexo, uma clara alusão ao debate do dia sobre machismo e feminismo, os lugares dos homens e das mulheres em nossa sociedade. Ainda a guerra dos EUA contra os árabes, ao trazer a referência a expressão ”Alah é grande”, utilizada por mulçumanos e, segundo relatos, dita por homens-bomba antes de algum ataque. E, de novo, para que serve o poema diante de tantas tempestades cotidianas? A ironia final do poema como este lugar do cansaço, mas ao mesmo tempo do novo ao ser ele o “porta-aviões” de sílabas impossíveis, de palavras que, muitas vezes, se parecem irreconciliáveis e improváveis de estarem em uma mesma estrofe ou num mesmo verso. “Princípio” é um poema que se inicia com um vigor do pássaro azul, descreve desesperanças de um “Abril” que engana, untado me mentiras, mas que ao finalizar, trazendo o poema como matéria literária, nos mostra que o poema ainda vale a tinta preta sobre o papel, ainda vale o grito. E se há um “Princípio”, talvez ele esteja mesmo nas próprias palavras a inaugurar outros meses de Abril.



Álvaro Taruma. 

Fonte: Google imagens


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