domingo, 24 de outubro de 2010

Foram as dores que o mataram

Não importa o dia. Nem importa mesmo o ano em que se conheceram. Aconteceu. E houve um momento em que se amaram. Talvez tenha havido muitos momentos em que se amaram.
Depois a rotina de vidas que se afastaram e, incompreensilvemente, continuam juntas. E, dramaticamente caminham juntas, num desafio permanente à vida, à morte, ao direito de viver.
Não matei o meu marido.
Eu amava-o. Por quê matá-lo?
Foram as dores do meu corpo que o condenaram. Foram o sangue pisado, o ventre moído, as feridas em pus.
Foram as pancadas de ontem, as de hoje e, sobretudo, as pancadas de amanhã que o mataram.
Eu amava-o. Por quê matá-lo?
Foi o meu corpo recusado e dolorido após o uso e os abusos. Foram a tristeza, o desespero e a dor o amor que não tinha troco.
Eu amava-o. Por quê matá-lo?
Às vezes ficava à janela, meio escondida, vendo-o partir para o trabalho com a roupa que eu lavara e engomara.
Gostava do seu modo de andar, do jeito como inclinava a cabeça. Via-o partir e ali ficava horas e dias à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança de que as coisas iriam mudar. Nesse dia não lembraria mais os tempos duros, os paus de pedra que me roíam e me desgastavam as entranhas. Mas para mim, não voltava nunca. Apenas para pedaços do meu corpo que esquecia logo.
Eu amava-o. Por quê matá-lo?
Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a destruição, a miséria, o animalesco. E nós.
Deu-me as armas e fez-me assassina.
...depois ficou tudo escuro.
E o corpo a doer, a doer, a...
Um soluço frágil absorve a última palavra.

In: SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Instituto Camões, Colecção Lusófona. 1999.


Um comentário:

Unknown disse...

Uma poesia tão pequena, mas vale uma vida inteira.