Estamos
na Ilha de Moçambique, em Moçambique, num galpão escuro, uma antiga alfândega,
mercado de escravizados. Era daqui que partiam corpos africanos agora
transformados em peças, mercadorias, para diversas partes do mundo, incluindo o
Brasil. Mas é também aqui, neste espaço, que está organizada a instalação “Nakhodha
e a Sereia”, da artista moçambicana Yara Costa. Se num primeiro momento, ao
adentrar o local, a imensidão e a escuridão do galpão nos assustam, em poucos
segundos, os barcos espalhados pelo salão, com luzes coloridas fazem nossos
olhos brilharem como de uma criança prestes a desvendar mistérios. A instalação
pode ser lida como uma homenagem à cultura marítima, em especial, a cultura
swahili – tão presente no norte de Moçambique, onde está localizada a Ilha –,
mas também à cultura de povos que vivem do (e no) mar em qualquer lugar do
mundo.
A
instalação “Nakhodha e a Sereia” aciona nossos diversos sentidos. Inicialmente,
somos convidadas a subir as escadas que dão acesso aos barcos, e nos sentarmos.
Depois, devidamente acomodadas acima do chão e, com fones de ouvido, Bento, o
guia-monitor, vai colocando os diversos sons que iremos ouvir, não sem antes
explicar cada um deles.
E
a magia começa. Os áudios captados em formato 360 graus nos causam a sensação
de estarmos ao vivo no exato momento de captação de cada um deles. São canções entoadas
em macua durante a feitura da embarcação; sons do barco indo ao mar; vozes
que se entrelaçam e que, para uma falante de língua portuguesa como eu, apesar
de não compreender nada, ainda me causam alguma emoção.
Após
esse mesmo processo de sentar e ouvir um som em cada uma das embarcações
menores, a surpresa maior da exposição encontra-se no último ato onde, agora,
somos nós as nakhodhas, as capitãs do dhow,
uma embarcação swahili imensa, que está alocada no centro do salão. Subimos ao dhow e ali, através de óculos de realidade
virtual, somos convidadas a olhar o passado, em que corpos escravizados
aparecem na tela, e imaginar um futuro em que o mar está subindo cada dia mais
devido ao aquecimento global.
A
idealizadora da instalação, Yara Costa, é uma artista moçambicana que viveu em
diversos lugares do mundo, mas que hoje vive na Ilha de Moçambique. Como diria Saramago
em seu O conto da ilha de desconhecida:
“É preciso sair da ilha para ver a ilha.” Yara sai, roda o mundo e volta com o
olhar ainda mais focado naquilo que a co-move todos os dias, o mar. Afinal, estar
na Ilha é também permitir-se mirar outros sítios de modo seguro. Formada em
Comunicação Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Yara Costa é uma
narradora de histórias que já realizou diversos trabalhos como os filmes “Entre
Eu e Deus”, “Depois da água”, e recentemente ganhou o "Prêmio de mentoria para respostas culturais e artísticas à crise ambiental", que reúne 12 artistas de todo o mundo.
Em
“Nakhodha e a Sereia”, o olhar da cineasta aparece demais. A artista vai nos
contando uma história que interliga presente, passado e futuro. A construção do
dhow hoje, a escravidão e a Ilha de
Moçambique como lugar de onde partiam escravizados, a exemplo de um dos barcos que navega a partir da Ilha, em 1794, e o futuro não tão
distante, em 2030. O que será da humanidade com o aumento do nível do mar? E as
populações que vivem do mar já têm percebido as mudanças? Em que isso impacta
esses saberes tradicionais? Poderíamos estar falando de vários povos do Brasil
e também do mundo, que têm no mar seu sustento e suas formas de vida.
Como
vimos na instalação, esse mar imenso que, apesar de revolto e, muitas vezes, mar-tenebroso
durante a escravidão, foi também mar-refúgio durante a guerra civil, em que muitas pessoas se refugiavam nos barcos ao
mar como espaço de fuga. É esse
mesmo mar que possibilita o sustento de tantas famílias que vivem dos
alimentos que ali recolhem.
No
final da instalação, a imagem das mulheres preenche a sala. Elas desfilam nas
paredes, catando mariscos na praia, com suas roupas e lenços coloridos, algumas
com filhos às costas, enquanto brincam, cantam e dançam. O trabalho no mar como o lugar
da alegria. E, nós, as capitãs do dhow,
com visão privilegiada sobre aquele imenso espaço azul, ficamos ali, sentadas, quase
hipnotizadas por aqueles cantos, como se as mulheres sereias fossem. Admiradas
diante do deslumbre da vida, nos esquecemos por um instante que estamos num
antigo mercado de escravizados, numa instalação, que nosso futuro está ameaçado.
A sensação é de que estamos em pleno mar, os pés acima do chão e a certeza de que o mar é
o mundo.